segunda-feira, 9 de agosto de 2010

O Mentiroso - análise crítica: Leonardo Simões.

Título: O MENTIROSO
Autor: Jean Cocteau (com adaptação de Maria Ana Caixe e Marcelo Baère)
Responsável ou Grupo: O Berro
Interpretação: Elaine Dias (Reflexo), Maria Ana Caixe (Mentiroso) e Ray Cenna (Boneco)
Direção: Virgínia Castellões


a) Relação entre a proposta apresentada na ficha de inscrição e o que foi percebido em cena:
Logo que a cortina se abriu, vislumbrou-se uma imagem promissora, tanto dos signos utilizados quanto na ocupação plástica do palco, inclusive na verticalidade em direção ao urdimento (sim, o Teatro Municipal de Niterói tem um excelente urdimento com toda a maquinaria tradicional de um palco italiano! Coisa rara nesses tempos de teatros adaptados em shoppings).
No proscênio estava uma atriz segurando uma marionete de fios; atrás dela, na linha central da cena, encontrava-se a armação de um grande espelho, perpendicular à platéia, dividindo o palco em duas metades, vendo-se um ator numa parte e uma atriz na outra, ambos com os mesmos figurinos da marionete e atados nas principais articulações por expressivos elásticos que pendiam do alto. A força visual dessa primeira imagem, ainda que trouxesse elementos que não têm nada de inédito, conduziu o olhar para uma recepção positiva e sugeriu que veríamos um instigante exercício de metateatro, tendo como ponto de partida a discussão de Cocteau sobre a verdade e a mentira.
O que se desenrolou, entretanto, não sustentou essa expectativa criada pelo desenho da cena. Parte dessa frustração talvez possa ser compreendida ao analisarmos a proposta entregue pelo grupo O Berro no ato da inscrição no Festival. No aspecto mais burocrático, percebe-se uma confusão entre o preenchimento da sinopse e da proposta de encenação, sendo as informações parcialmente repetidas sem sentido. Quanto ao conteúdo e à proposta em si, nota-se que, embora citado na referida ficha, o aspecto principal da metateatralidade fica subjugado a um enquadramento psicológico da relação entre verdade e mentira, reduzindo o alcance teatral da cena a uma proposta de tese que não encontra base sustentável no texto e tampouco desenvolvimento expressivo no monólogo partilhado pelos três atores.

b) Questões acerca da dramaturgia:
O texto de Cocteau, por sua pequena dimensão e por confrontar os conceitos de verdade e mentira, é uma ótima oportunidade para se trabalhar as questões que sempre moveram e continuam movendo o teatro. Ao contrapor inicialmente o que é verdadeiro e o que é falso, apresentando depois os variados matizes e contradições entre esses dois extremos, Cocteau faz uma referência direta a Diderot, que no século XVIII já colocava essa questão através do seu Paradoxo do comediante, contrapondo-se ao teatro rigidamente convencional de sua época. Tal potencial dramatúrgico, útil para nós ainda nos dias de hoje, talvez tenha sido desconsiderado pela encenação, que o esvaziou com a distribuição do texto entre vários emissores, sem acrescentar algo mais do que uma interessante imagem inicial que não sustenta a cena em seu desenvolvimento.
Cabe aqui comentar a importância da função do “dramaturg”, ou dramaturgista para nós brasileiros (diferenciando-se do termo dramaturgo, escritor de teatro). Esse profissional chegou a existir no Brasil, em diversos grupos e companhia, na década de 1990, mas parece estar mais escasso hoje em dia. Com domínio teórico da literatura dramática e da história do teatro, cabe a ele estudar o texto escolhido pelo grupo ou encenador, assim como seu contexto histórico original, dando ao diretor e aos atores os subsídios (através de palestras, oficinas de estudo, vídeos, discussão de textos) para que esses passem a ter total liberdade na criação sem que o desconhecimento daquelas informações gere maiores problemas na relação entre texto e encenação. Em lugar de significar uma ênfase do textocentrismo, como talvez possa parecer, essa função visa preservar no processo as características próprias da dramaturgia, que serão aproveitadas ou não pelo diretor que poderá aplicar a sua concepção de modo mais livre, porém embasado.

c) Sobre a linguagem cênica e as referências utilizadas:
Houve por parte da diretora Virginia Castellões uma boa distribuição simbólica dos elementos do discurso, que para maior clareza do leitor são organizados aqui de modo diferente do que consta na ficha: realidade (o manipulador), realidade ficcional (a marionete real); e a ampliação dessa ficção duplicada (a marionete-humana e o seu reflexo). A proposta escrita aponta a opção de vincular o primeiro (manipulador) e o último elemento (o boneco humano e seu reflexo) às estruturas psíquicas denominadas por Freud e aqui descritas numa síntese simplista: o Id (os instintos motores do organismo, alheios às convenções sociais), o Ego (é o componente individual da personalidade, que equilibra as exigências do Id e do Superego com a realidade do mundo exterior) e o Superego (o componente social da personalidade, as normas e valores sociais introjetados pelo indivíduo, atuando como censor do Ego). Sem entrarmos no mérito dessa abordagem psicológica, cuja metáfora cênica apresentada seria bastante discutível, observa-se que o principal problema do esquete reside não nessa opção em si, mas nas conseqüências pouco elaboradas do caminho escolhido.
Na construção interna da concepção dessa cena, ou ao menos na formulação escrita da mesma, houver ainda a associação dessas estruturas a psique a dois planos batizados como “realístico” (o plano da frente com o manipulador e o boneco real) e “surreal” (o plano posterior, com o boneco humano e seu reflexo). Isso parece complicar ainda mais a proposta, esvaziando a relação concreta entre os conceitos de verdade e mentira, que seria enriquecedora como base técnica para os atores conquistarem maior domínio no diálogo extraído do solilóquio de Cocteau. Em vez de clarear essa relação paradoxal, valorizando os contrastes a serem expostos na cena, a complexa concepção parece tentar explicá-la. Assim, a rede psicológica jogada sobre o organismo vivo das múltiplas possibilidades do texto acaba por engessá-lo numa abordagem única, talvez mal assimilada pelos atores ou de difícil expressão concreta, resultando numa atuação vazia e destituída de um jogo verdadeiramente teatral, limitado à idéia à priore.
Dessa forma, a interessante distribuição dos emissores da narrativa, representados por símbolos de intensa teatralidade (o manipulador, a marionete real, a marionete-humana e seu reflexo), esvazia-se quando o texto assume a cena, sem que as muitas possibilidades da metáfora desenhada se realizem.
Não se construiu, em paralelo à idéia primeira, uma linguagem concreta para que os atores manejassem seu texto, seu corpo e sua voz.

d) Quanto à interpretação:
O elenco não se mostrou preparado para manejar os personagens simbólicos que estavam desenhados pela encenação (ou pela adaptação do texto). Livres de uma idéia preconcebida de modo tão complexo, e com base teórica duvidosa, talvez eles possam experimentar verdadeiramente as muitas relações possíveis da mentira que constitui o jogo cênico: o manipulador e o manipulado (tanto o boneco real quanto o humano); o boneco humano e seu reflexo; o espaço real e o imaginário; a recepção abstrata do texto e o público real; os dois territórios separados e ao mesmo tempo unidos pela fronteira representada pela superfície fictícia do espelho, enfim. Tudo isso experimentado de modo físico, com interferência de movimentos e sonoridades, pode enriquecer muito a estrutura visual já esboçada pela encenação, abrindo a possibilidade para muitas leituras.
A marcação inicial dos atores do fundo, presos aos elásticos, acaba sendo cumprida de modo impreciso quando os atores saem de seus focos por conta de movimentos que parecem desnecessários, frutos de um espontaneísmo corporal contraditório com os personagens que representavam. Gestos naturalistas que ampliaram a confusão quanto à proposta da cena. Há uma ênfase textual que não interage com o desenho da cena e das personagens, chegando por vezes a uma retórica que remete ao estereótipo do mau teatro infantil.
A própria relação do manipulador com o boneco real fica quase limitada a uma pose, sem constituir uma interação concreta. Dessa forma, a repartição do monólogo entre três emissores soa quase gratuita e arbitrária, pois não existe uma contracenação de fato que acentue as distinções desses elementos do discurso. Talvez em função do problema técnico da tesoura (com a qual a atriz que fazia o manipulador não conseguia cortar os elásticos do atores do fundo), houve uma repetição excessiva da frase final, que esvaziou o sentido da mesma e evidenciou a falta de domínio na relação entre desenho de cena, texto e interpretação.

e) Sobre outros recursos expressivos utilizados:
Como já citado acima, os figurinos, a cenografia e os adereços são interessantes, mas parecem estar a serviço de uma imagem única, uma pintura estática, e não como ferramentas de uma ação que no teatro se faz concreta.
A força plástica inicial, esvaída gradativamente ao longo das falas, desmontou-se completamente quando o manipulador tentou cortar os elásticos do boneco e de seu reflexo, com uma dificuldade técnica quase cômica, porque inesperada. O incidente revelou a arbitrariedade do gesto. Seria de fato importante “cortar” essas cordas que sustentam a ficção? Isso é uma ação cênica que contribui para o que está sendo discutido ou é uma solução meramente formal de desfecho com base numa expectativa ligada ao clichê da libertação do ser humano feito marionete? E, levada essa idéia à última conseqüência, por que o manipulador intervém diretamente no reflexo, cortando também as cordas dessa marionete virtual, como se transformasse simplesmente num contra-regra, fundindo aleatoriamente os planos anteriormente tão bem definidos?

f) Comunicação cênica:
A recepção por parte do público parece ter acompanhado o mesmo gráfico descrito acima: um encantamento inicial substituído gradativamente por desinteresse, fruto da não assimilação. Os elementos visuais, gestuais e textuais da cena estavam díspares; o cuidado da imagem inicial não se evidenciou na evolução da cena, enquanto movimento e emissão do texto. O público, como entidade coletiva, é mais sábio do que a soma de suas partes individuais. Ele percebe. Não sabe o que é, mas sente que algo está errado. A máquina não funciona.

g) Comentários gerais:
No âmbito de um Festival de Esquetes, que tem na origem da palavra esse caráter de “esboço”, toda experiência é bem vinda, mas convém que, a partir de seus acertos e também de seus equívocos, tenhamos todos (quem assistiu e quem realizou) a generosa liberdade de observar, refletir e aprender. Para tanto, não é preciso que ninguém se postule como “dono da verdade”, mas também não cabe mergulharmos no extremo oposto, compactuando com a mentira.

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