terça-feira, 3 de agosto de 2010

A mais forte, estruturada. Crítica Leonardo Simões


Esquete nº. 03 da quinta-feira, dia 29/7/2010 - Título: A MAIS FORTE, ESTRUTURADA
Autor: Adaptação de Márcio Zatta do texto de August Strindberg
Responsável ou Grupo: Cia. Teatro da Estrutura
Interpretação: Amélia Cristina (1ª srª X); Helen Maltasch (2ª srª X); Cíntia Travasso, Otto Caetano e Diego Sant´ana (a srª Y, respectivamente da direita, do centro e da esquerda).
Direção: Márcio Zatta

a) Relação entre a proposta apresentada na ficha de inscrição e o que foi percebido em cena:
A proposta escrita desse esquete refere-se ao trabalho de pesquisa realizado desde 2007, com o diretor Márcio Zatta, incluindo um “método” desenvolvido por ele, o “Teatro da Estrutura”, que também dá nome à companhia. Esse método, segundo consta na ficha, “mescla a verdade do ator e da personagem sobre determinado tema” para que se possa definir “a verdade absoluta para a composição da personagem” no processo de montagem. Como linhas para a encenação são citadas diversas referências teóricas e técnicas de treinamento: expressionismo, Artaud, kempô (arte marcial oriental que estuda o movimento dos animais) e Grotowski.
No esquete apresentado, lê-se desde o início a intenção de uma cena anti-realista, visando a desconstrução do texto e a valorização dos aspectos mais visuais da cena, sobretudo nos gestos rítmicos contínuos realizados em sincronia pelos três atores que estão sentados ao centro do palco (o trio que representa a Senhora Y) e também pela movimentação da atriz que faz seu desabafo (Amélia Cristina, como Senhora X) em torno das personagens sentadas. À esquerda, mais ao fundo, em atitude suspensa e estática, encontra-se a outra atriz (Helen Maltasch), que na parte final passa a assumir também o discurso da Senhora X, revezando-se com a primeira e também em ocasional sincronia.
As referências citadas apontam (ou explicam) o sentido da ênfase corporal dada à cena, a tal ponto que a ação física se sobrepõe ao texto, abafando-o ou mesmo anulando-o. A personagem da senhora X, deslocada para o perímetro do palco e para o proscênio, fica relegada a um inevitável segundo plano, apesar de sua intensa movimentação, em função da força visual da personagem central, triplicada no gestual orquestrado das ações físicas executadas pelos três atores sentados. Como senhora Y que somente ouve, presa a sua realidade imediata e passiva, eles peneiram arroz ou algum outro cereal e jogam-no ocasionalmente em baldes que ficam ao seu lado, pontuando momentos do conflituoso discurso da senhora X.
São alcançados de imediato, portanto, o estranhamento inicial e o estabelecimento de um universo expressionista, tal como proposto na ficha de inscrição; mas para tanto não seriam necessários os quase 15 minutos em que se desenrolam pequenas variações. O interesse inicial não é sustentado em função da quase anulação do texto, seja pela já citada ênfase na expressão gestual, ou pelas dificuldades na emissão das palavras, talvez decorrentes do esforço corporal ou de um desnível entre a preparação do corpo e da voz, que é desigual entre as duas atrizes que falam em cena.
Ainda que se considere a ruptura com a estrutura textual, o que resulta é uma seqüência de partituras intercaladas, por vezes interessantes pelo rigor técnico na sincronia (apesar de eventuais incidentes, como o da vela que caiu).

b) Questões acerca da dramaturgia:
A encenação de uma peça teatral, mesmo em se tratando de uma peça curta, condicionada ao formato do esquete tem se mostrado uma tarefa difícil e raramente bem sucedida. No caso desse trabalho, fica a impressão de que precisaríamos saber algo que nos é negado para acessarmos uma chave de entendimento (falo isso considerando que o espectador do Festival não precisaria ter lido o texto original para fruir a cena). Mesmo porque, como já foi esboçado, até a compreensão auditiva de parte do texto fica prejudicada pelas condições de emissão do mesmo.
Talvez esse problema possa ser explicado, em parte, se o esquete apresentado for uma compressão ou o trecho de um trabalho de maior duração, embora isso não tenha sido informado na ficha. E, visto que o texto original de Strindberg (A mais forte) já é uma peça curta, tal compressão não deveria ser tão traumática quanto o que ocorre com a adaptação de peças mais extensas. Enfim, a impressão que se tem quanto ao texto, ao assistirmos à cena, é de que ele é desnecessário. Ou, ainda, pode-se perguntar: por que escolher essa peça? A busca excessiva de autonomia entre texto e ação (fora a compreensão imediata das funções exercidas pelas personagens X e Y no discurso) parece resultar numa partitura corporal que poderia abrigar diversas outras peças, algumas das quais talvez com maior eficácia.

c) Sobre a linguagem cênica e as referências utilizadas:
Apesar das considerações acima, deve-se respeitar o espaço garantido no Festival quanto à apropriação do esquete na acepção original do termo (do inglês sketch, que significa esboço ). Daí vermos alguns trabalhos que são reflexos de exercícios ou de realizações práticas de pesquisas, ou mesmo de embriões de futuros espetáculos. Têm seu valor como expressão e compartilhamento de um processo, ainda que cada um deles não se sustente como um esquete autônomo, com a unidade que se espera apesar da pouca duração.
Feita a ressalva, pode-se dizer que, nessa cena, a dificuldade da adaptação de uma peça ao formato específico de um esquete é ampliada pela linguagem cênica adotada. As referências citadas na proposta escrita parecem fundamentar o trabalho contínuo do grupo, mas não colaboram com a construção desta cena (se for permitida a metáfora) como uma porção a ser servida e degustada nesse variado buffet que é um festival de esquetes.

d) Quanto à interpretação:
O rigor formal do elenco impressiona, tanto pelo esforço físico resultante de um intenso treinamento, como pela disciplina na submissão à linguagem definida pela direção. Por outro lado, essa “submissão” parece esvaziar a autonomia criativa dos atores e mesmo o seu domínio em cena quando “a orquestra desafina”, como no caso em que a vela de um dos atores caiu no chão. Ela “não deveria ter caído” e, portanto, foi ignorada (mas não pelo público). É nesses incidentes que, às vezes, o presenteísmo do teatro se manifesta, como um grito natural de socorro em meio a toda a mecanização do humano. Não se trata aqui de supervalorizar um incidente que de modo algum afetou a qualidade da cena como um todo, mas apenas usá-lo como um ponto mais concreto de compreensão do que parece faltar ao esquete apresentado: o espontâneo ou o vivo, dentro do que está determinado ou coreografado.
Quanto aos recursos expressivos do elenco, percebe-se um desequilíbrio, já comentado acima, entre a energia aplicada ao trabalho corporal e ao trabalho vocal. E ainda um desnível na voz entre as atrizes que se encarregam da verborrágica senhora X. A atriz Helen Maltasch, que passa a revezar o texto com a anterior, não apresentou uma boa emissão vocal, falando o texto com tonalidade única e rapidez excessiva, o que colaborou para a queda de interesse na segunda parte da cena. Se por um lado a estrutura do que era visto na primeira parte praticamente não se modificou, aquilo que era ouvido, com compreensão já dificultada por tudo que foi analisado anteriormente, passou a ficar menos expressivo ou quase ininteligível.

e) Sobre outros recursos expressivos utilizados:
A atriz Amélia Cristina (a 1ª srª X) fez uma intervenção cantada com impostação lírica e boa qualidade técnica, trazendo um interessante colorido àquele instante. Já a música de fundo prejudicou em alguns momentos a compreensão do texto.
Foram usadas velas acesas em cena, manipuladas pelos três atores que ficavam sentados com movimentos iguais. Embora tenham causado um interessante efeito, conferindo alguma variação ao gestual da primeira parte, causaram certa inquietação (além da quebra da precisão) no já citado incidente em que uma das velas caiu.
As caras pintadas de branco talvez tenha sido uma opção de caracterização para reforçar o tom expressionista pretendido pela cena. Foi possível notar, neste 3º Festival, um uso freqüente desse recurso em diversos esquetes apresentados. Parece uma tendência de ênfase do anti-realismo, uma espécie de grito agônico da teatralidade. Lembra, também, a imagem que o senso comum associa ao teatro, numa espécie de ingenuidade ou amadorismo. Ou seria uma fronteira de resistência intuitiva à persistente onda do stand-up comedy, também chamado de “humor de cara limpa”?

f) Comunicação cênica:
O quadro inicial da cena, pelo estranhamento e pela sincronia dos movimentos, garantiu ao esquete um interesse junto ao público. Ao longo da cena, entretanto, esse vigor inicial parece ter diminuído. Apesar disso, a reação da platéia ao fim do esquete foi um educado aplauso, apontando a tônica do Festival, no que se refere ao público: uma atitude respeitadora do empenho dos diversos artistas que se apresentaram com suas mais variadas propostas.

g) Comentários gerais:
Todos os apontamentos feitos foram desenvolvidos nos itens anteriores.

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