terça-feira, 3 de agosto de 2010

Aqui no sistema. Crítica de Leonardo Simões


Título: AQUI NO SISTEMA Esquete nº. 01 da quinta-feira, dia 29/7/2010.
Autor: Márcia Mendel
Responsável ou Grupo: Encenando
Interpretação: Talita Menezes e Maelcio Moraes
Direção: Mariana Rebello

a) Relação entre a proposta apresentada na ficha de inscrição e o que foi percebido em cena:

A proposta que consta na ficha já sugere a despretensão evidenciada na apresentação, embora tenha sido escrita de forma um pouco confusa, talvez na tentativa frustrada de conferir maior complexidade à intenção da cena.
Aliás, abro aqui um parêntesis para um comentário mais amplo, não específico do esquete em questão. Essa dificuldade dos proponentes escreverem sobre o trabalho que pretendem apresentar é muito frequente, não só nas fichas do Festival, nesta edição e na anterior, como também em inúmeros “projetos” de espetáculos que tenho tido a oportunidade de ler quando exerço as funções de parecerista e gestor de teatro. Tal constatação aponta um exercício necessário aos grupos em geral: escrever sinceramente sobre o próprio trabalho, ainda que pareça uma tarefa “burocrática” ajuda o proponente (e especialmente o responsável pela encenação) a lançar um olhar crítico, distanciado, sobre o seu próprio fazer, sobre as intenções que o movem e as referências que estão entranhadas no seu processo, muitas vezes de forma inconsciente ou ingênua. Por vezes, os problemas de determinadas cenas ou espetáculos podem ser detectados, e superados, pelo simples ato de parar e escrever, como objetivação de um pensamento. E sabemos que a escrita é mais facilitada quando há um hábito de leitura, o que gera um círculo virtuoso que só favorece ao maior domínio das ferramentas do teatro. O que não significa que os artistas, mesmo o diretor, precisem se tornar teóricos do teatro para exercerem seu ofício; mas simplesmente que é importante ampliar seu universo de referências, num processo gradativo, a fim de entenderem melhor o que estão fazendo e perceberem os obstáculos para atingirem a realização de suas propostas.
Dito isso, volto ao esquete Aqui no sistema. Na decifração da proposta escrita e no que foi visto no palco percebe-se uma realização da cena colada no texto (isto é, quase limitada a “realizar” o diálogo, o que não é um mal por si só) e por isso despretensiosa e sem uma elaboração além da própria “crítica” embutida no texto, que será analisado no item seguinte. Entretanto, no teatro, toda “realização” de um texto escrito, mesmo numa encenação simples, impõe a tomada de decisões ou opções diante da infinitude de possibilidades (nem sempre percebida). A diretora Mariana Rebello optou por valorizar a espoliação do sujeito (no caso, o personagem que pede uma pizza por telefone) diante da invasão de sua privacidade, utilizando o vestuário como uma “metáfora” (termo enfatizado na proposta escrita): o ator vai sendo gradativamente despido pela atendente da pizzaria, num jogo teatral em que os personagens que estariam supostamente distantes no espaço, somente conectados pela ligação telefônica, passam a interagir dividindo o mesmo espaço. Esse dado de “teatralidade” na relação física entre os atores, que já tem sido bastante utilizado e de fácil assimilação pelo público, pareceu ser o recurso principal (talvez o único?) usado pela diretora como meio de extrair a cena do seu contexto cotidiano para acompanhar a situação extrema proposta pelo texto. Outro elemento que tentaria apontar para um deslocamento da realidade é a opção pela cenografia que será comentada em outro item mais à frente.





b) Questões acerca da dramaturgia:

A situação proposta pelo texto Aqui no sistema, assinado por Márcia Mendel, parte de um ato banal e cotidiano para se tornar mais complexa ao longo do diálogo: um homem sozinho em casa, assistindo à TV, pede uma pizza pelo telefone; a atendente responde com o tom quase mecânico, típico do telemarketing, ao mesmo tempo em que vai revelando detalhes da vida privada do cliente acessados no “sistema”, que tudo contém.
A crítica bem humorada presente no texto toca no aspecto contemporâneo de submissão da vida privada aos mecanismos automáticos de controle social e financeiro do indivíduo na era da informação. Sendo uma questão que afeta o nosso cotidiano, esse tema cumpre bem a função de criar a identificação com os espectadores, que se vêem representados em cena, embora se trate de uma situação extrema (mas verossímil) do que ocorre na realidade. Assim, o esquete é um diálogo bem construído e que vai direto à questão sem maiores pretensões de estilo. Além dos já citados recursos de identificação, verossimilhança e exagero do real, o esquete marca sua nota cômica pelo do bordão da atendente (“aqui no sistema”), cuja repetição chega a esvaziá-lo, talvez em função da ênfase em tom único com que é dito pela atriz (provavelmente como uma opção da direção).
Esses elementos, que são comuns e até caracterizam a estrutura clássica do texto cômico, garantem uma compreensão imediata da cena e, por isso mesmo, favorecem a sensação de que tudo é previsível. Essa previsibilidade da situação, que muito frequentemente garante gargalhadas quando bem compensada por sutilezas de interpretação, por outro lado leva ao risco da perda parcial do interesse pelo desenvolvimento do esquete, sobretudo quando a interpretação e a direção se limitam a reforçar o que já está óbvio no texto.

c) Sobre a linguagem cênica e as referências utilizadas:

Conforme esboçado no item acima, não houve no esquete a associação com outras referências além das que já estão explícitas no texto. O elemento explorado pela direção na tentativa de uma escrita cênica foi a quebra dos limites espaciais entre os atores, cujos personagens estão se falando por telefone (como não tive acesso ao texto, somente posso deduzir que essa interação da atriz “despindo” o cliente, tenha sido uma idéia da encenação, mas também podia já estar indicada previamente pelo autor, nas rubricas), sem chegar a constituir uma linguagem para o jogo cênico. A conjugação entre texto, interpretação e outros elementos cênicos, analisados nos tópicos seguintes, talvez possa ser alvo de maior elaboração, buscando uma interação que não deve reforçar ou “dizer o mesmo”, mas que conjugue esses elementos, inclusive como forma de compensar a previsibilidade da situação proposta no texto.

d) Quanto à interpretação:

Nas primeiras frases do diálogo, os personagens já são claramente identificados, por serem expressões do nosso cotidiano ou de nós mesmos, como convém à comédia. Por isso mesmo, ressente-se da ausência de contrapontos na elaboração dos mesmos, para que eles saiam do limite dos tipos e tragam também alguma peculiaridade, algum dado menos previsível, a fim de que o interesse se renove ao longo da cena. O jogo teatral possibilita quebras e uma independência entre ator e personagem, inclusive acompanhando o que é sugerido pela já comentada quebra dos limites espaciais (atores interagindo fisicamente apesar dos personagens estarem distantes). Isso é dito aqui apenas como sugestão de um caminho de aprofundamento do trabalho dos atores Talita Menezes e Maelcio Moraes, que cumprem suas funções imediatas; entretanto, talvez pela pouca experiência, ainda carecem de maior atenção (e orientação) quanto a essa relação entre os personagens e o seu próprio espaço de criação dentro do que está proposto no texto e sugerido pela direção.




e) Sobre outros recursos expressivos utilizados:

Fora a cadeira em que o cliente está sentado diante da TV imaginária, visualizada em direção à platéia, os elementos cenográficos utilizados são caixas de papelão empilhadas ao fundo, dividindo o palco ao meio, e que servem como uma espécie de “empanada” improvisada de teatro de bonecos, atrás da qual surge a atendente da pizzaria que responde à ligação telefônica. Essa utilização de elementos não-realistas ainda não estava apontada na proposta entregue na inscrição, que indicava a opção por um “figurino neutro e, praticamente, a ausência de cenário”. Não há nenhum problema na evolução da proposta da cena entre o ato de inscrição e a apresentação. A observação importante aqui é que a opção pelas caixas nada leva à neutralidade, já que cenicamente o conjunto bem montado sugere uma “instalação” que é visualmente bastante forte, embora simples. E, na recepção do público, a visualização desses elementos é anterior e preponderante ao próprio desenvolvimento da cena. Diante das lacunas de uma escritura cênica autônoma ou ao menos eficaz para valorizar o texto (conforme já comentado em itens anteriores), a opção talvez quase improvisada quanto ao uso desses elementos para “preencher” a cena, entra em conflito com o restante da proposta, pois despojamento não é necessariamente sinônimo de neutralidade. Essa oposição talvez não representasse um problema e poderia até colaborar com o desenvolvimento da cena, se tais caixas fossem incorporadas a ela, não só em sua função visual (decorativa), mas com uma efetiva interação funcional com a ação, ampliando o grau de interesse e a conjugação dos diversos elementos esboçados.

f) Comunicação cênica:

Por ser o primeiro esquete do primeiro dia, a platéia ainda estava um tanto “fria”, ou talvez ainda digerindo os inesperados códigos do histriônico apresentador do Festival. Mas, como costuma ocorrer com toda cena cômica e de fácil identificação, o público reagiu de início com as risadas que evidenciam a identificação com a situação proposta. Ao longo da cena, entretanto, talvez pela previsibilidade já comentada, essas risadas passaram a evidenciar algo de complacência. Os aplausos finais revelaram uma nota constante em todos os dias, no que se refere à reação da platéia: o respeito com o trabalho dos grupos e com a própria proposta de diversidade e estímulo do Festival de Esquetes.

g) Comentários gerais:

Nada a acrescentar além do que já foi apontado nos itens anteriores. Somente uma explicação: comecei o trabalho de análise tentando seguir a ordem de apresentação, assim, sendo esta a primeira crítica escrita, embuti nos comentários desse esquete (Aqui no sistema) uma série de observações que provavelmente serão válidas para diversas outras cenas; por esse motivo, as análises seguintes deverão ser mais concisas, sem demérito algum dos demais participantes.

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