terça-feira, 3 de agosto de 2010

Ana e Sofia. Crítica de Leonardo Simões


Esquete nº. 02 da quinta-feira, dia 29/7/2010 - Título: ANA E SOFIA
Autor: Ribamar Ribeiro
Responsável ou Grupo: CTI – Comunidade Teatral do Irajá
Interpretação: Camila Zampier (Ana); Talita Bildeman (Sofia); e Almir Rodrigues (Leon).
Direção: Ribamar Ribeiro

a) Relação entre a proposta apresentada na ficha de inscrição e o que foi percebido em cena:
A proposta apresentada toca diretamente nos pontos percebidos como bases da cena realizada: o texto e a oralidade estruturados na linha do teatro narrativo; o uso simbólico de módulos e um baú que se transformam cenicamente, assim como tecidos coloridos, além do figurino simples que busca garantir, a um só tempo, a identidade e a unidade entre os personagens.
Caminhando sobre essas bases claras, e sem maiores pretensões, o trabalho evidencia o desenvolvimento contínuo do diretor, com seus atores e alunos, na linha do teatro narrativo, que busca mesclar cenicamente o ator-emissor e o personagem, numa fusão entre os gêneros épico e dramático. A função narrativa é então revezada de modo dinâmico entre as duas atrizes e o ator, sendo que no início este último assume mais a narração neutra, para só mais tarde passar a representar também o personagem Leon, que é o pivô de toda a trama.
Uma tendência ao exagero da dramaticidade (cuja aceitação varia muito conforme o gosto do receptor) é justificada tecnicamente, coerente com os diversos signos utilizados na cena. Essa dose de exagero dramático e o tom fortemente lírico, tanto nas situações propostas como no modo de expressá-las também esteve presente no esquete do mesmo diretor apresentado na edição passada (o esquete Minha alma é nada depois dessa história, com o seu núcleo profissional Os ciclomáticos), sugerindo uma espécie de estilo ou assinatura autoral da cena.

b) Questões acerca da dramaturgia:
A cena traz a história de um engano fatal, que faz com que as irmãs Ana e Sofia, muito ligadas entre si, tenham sua relação abalada. A suposta paixão por um mesmo homem é motivo de ciúmes que nascem de uma carta amorosa, e não assinada, guardada num baú. Certa de que essa carta fora escrita para Leon por Sofia, a irmã-poeta, Ana se sente traída e acaba por matar sua irmã. Após o tresloucado gesto, o engano é desfeito: na verdade, o rapaz pedira à Sofia que escrevesse a tal carta como se fosse ele expressando poeticamente o seu amor por Ana. A trama, portanto, é bastante simples e traz elementos do gênero folhetim, oriundo da literatura novecentista e que se perpetuou em algumas telenovelas: triângulo amoroso; laços familiares desfeitos em função de uma suposta traição; assassinato passional; e o fatídico reconhecimento tardio do engano trágico. Tal situação só ganha maior interesse no esquete porque o texto tem um tom assumidamente literário (não banalizado num diálogo diretamente teatral) e pelo recurso interpretativo do ator-narrador, integrado ao tratamento plástico dos elementos da cena.

c) Sobre a linguagem cênica e as referências utilizadas:
O envolvimento do diretor e de seu elenco com a pesquisa do teatro narrativo confere à cena sua principal sustentação: o jogo contínuo e fluído na alternância da narrativa e a harmonia de tom na construção de seus personagens. A marcação quase esquemática da cena, chegando à ocupação geométrica do palco, é atenuada pela qualidade dos movimentos e deslocamentos, associando algo de natural àquilo que é arbitrário. Nesse sentido, percebe-se uma ligação longínqua com a dança, que esteve mais aparente enquanto coreografia no já citado esquete apresentado em 2009, e que aqui talvez resida no trabalho subterrâneo, como treinamento ou mera inspiração. Além de uma espécie de musicalidade contínua, por vezes reforçada pela sonoplastia, há uma visível preocupação com o uso rítmico das falas, atributo essencial de um bom teatro narrativo.

d) Quanto à interpretação:
A linguagem construída pelo encenador e seus atores a partir da pesquisa sobre o teatro narrativo, conforme comentado acima, encontra boa repercussão nas características e recursos do elenco. Com boa voz, Camila Zampier (Ana), Talita Bildeman (Sofia) e Almir Rodrigues (Leon) respondem bem às exigências do texto e da direção, tanto nos momentos de uníssono que quase resultam numa melodia, quanto nas variações rítmicas e individualizações dos personagens. A transição entre ator-narrador e personagem se dilui de modo natural, mas sem perder a clareza. Isso só pode ser resultado de dedicação e treinamento, evidenciando uma outra qualidade essencial do elenco que é a disciplina (no sentido mais libertário do termo, entenda-se bem). Embora presente, o risco do tom folhetinesco, quanto às contradições entre o exagero e a naturalidade na interpretação, não chegou a desestruturar a atuação do trio, que se manteve coeso, sobretudo pela confiança na linguagem estabelecida pela cena.


e) Sobre outros recursos expressivos utilizados:
Fora o uso funcional de cubos, a cena é marcada por um elemento central: um simbólico baú, colocado ao fundo e de onde saem não só a origem do engano (a carta), mas também a sua conseqüência (a morte de Sofia). A preparação para o assassinato é bem acentuada visualmente quando Ana retira do baú um longo tecido vermelho que atravessa a cena e que depois será usado de modo intensamente teatral no estrangulamento da irmã.
Acompanhando essa força visual, os figurinos, concebidos e elaborados com simplicidade, conferem aos atores a necessária unidade; colaboram com a já citada fluência na alternância da narrativa e evitam o risco de isolamento dos três personagens desse equivocado triângulo amoroso.

f) Comunicação cênica:
O esquete obteve boa comunicação com o público, sugerindo um envolvimento emocional dela com a cena pela dramaticidade da situação de fácil compreensão. Para essa interação palco-platéia contribui muito o recurso do “contar e fazer”, que normalmente resulta num misto de estranhamento e aceitação da linguagem, que surpreende pela assumida teatralidade enquanto atrai pela clareza.


g) Comentários gerais:
Como já foi dito, o esquete evidencia a continuidade de uma pesquisa, com crescente domínio de seus recursos narrativos focados na comunicação direta e no envolvimento emocional/sensorial da platéia.

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