segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Crítica UNIMUNDO por Leonardo Simões

O judeu polonês Zamenhof criou em 1887 uma língua que reunia vocábulos e regras gramaticais de diversos idiomas, na esperança da integração de nações e povos de todo o mundo. Era o Esperanto, que apesar do interesse inicial foi duramente combatido durante as duas grandes guerras pelos governos totalitaristas da Rússia, Japão e Alemanha. Inclusive, a ocupação nazista dizimou toda a família do médico criador desse curioso projeto que pode ser considerado como um precursor cultural da ideia de globalização, em seu aspecto mais positivo. Unimundo é uma língua fictícia semelhante ao Esperanto, que dá título ao esquete apresentado no IV Festival Niterói pela Objetores Companhia de Atores. Aqui, entretanto, esse idioma vai sendo revelado como uma farsa criada por um suposto professor para ludibriar uma aluna gaga que o procura para aprender aquela inusitada linguagem. Porém, o interesse causado por essa brincadeira linguística não é esvaziado por esse embuste. Ao longo do esquete, a aluna vai se envolvendo cada vez mais e passa rapidamente a dominar o código, na mesma medida em que sua chave de compreensão também vai sendo assimilada pela plateia, ampliando gradativamente a comunicação e a comicidade da cena. Esse deslocamento da linguagem verbal, firmemente dominado pelo casal de atores, reforça a teatralidade do esquete, aproximando-o de alguns exercícios cênicos como a blablação (proposto por Viola Spolin em seu método de improvisação para o teatro) e o grammelot (difundido por Dario Fo em suas pantomimas), que consistem basicamente em dizer um texto sem usar as palavras convencionais, mas apenas onomatopeias e eventualmente um mix de sonoridades estrangeiras, sempre tendo em mente o sentido do texto como um subtexto a ser expresso apesar dos obstáculos verbais. São exercícios bastante conhecidos que refinam a capacidade expressiva do ator e fazem com que utilizem organicamente o corpo como elemento de comunicação (Viola Spolin usa o termo fisicalização como qualidade resultante dessa técnica). Assim, além de ser uma excelente ginástica interpretativa, Unimundo coloca o espectador no centro da questão fundamental do teatro, que é o sentido da comunicação através, além e apesar das palavras. Tanto é assim que a impossibilidade da comunicação humana foi o tema central de vários dramaturgos de meados do século XX, cujas obras, por mais distintas que fossem, acabaram sendo arquivadas sob o rótulo genérico de Teatro do absurdo, exatamente porque tratavam como naturais situações insólitas, sobretudo nas relações entre significante e significado. Na verdade, pelo efeito do paradoxo, esse procedimento jogava um olhar de estranhamento sobre os absurdos cotidianos que aceitamos como plenamente naturais. Desde então, diversos autores tem bebido das águas divididas por esse marco histórico da dramaturgia universal, cujos expoentes mais famosos foram o irlandês Samuel Beckett e o romeno Eugene Ionesco. Esse esquete parte da mesma fonte, mas é focado no efeito cômico gerado pela circunstância e enquadrado numa situação realista, ao contrário das obras do citado período. É preciso comentar que o texto de Unimundo _ principal valor do esquete apresentado _ é apontado na ficha de inscrição no Festival como autoria do ator Gustavo Berriel, a partir do texto Unamunda incluído na coletânea de cenas curtas Tudo no timing, escrita por David Yves. Esse limite da “adaptação” é discutível, sobretudo quando disfarçada sob o rótulo “livremente inspirado”. Até onde se pôde verificar, o texto desse esquete é muito semelhante ao original, não sendo justificado o crédito que sugere uma nova autoria. Fora esse aspecto do registro autoral do texto (afinal, as palavras são ou não um mero pretexto?), o que vimos foi um esquete fluente, dinâmico, interessante e muito bem executado dentro da simplicidade de sua proposta. As quebras são bem construídas, apontando a boa direção de Celina Bebianno, que desenvolveu com clareza as potencialidades da situação apresentada. Todos os elogios são dedicados à eloquente atuação de Gustavo Berriel, que demonstrou pleno domínio da cena. Sua performance, com uma excelente articulação da miscelânea de sonoridades e vocábulos do complicado idioma, foi responsável por grande parte do sucesso desse curioso esquete junto ao público, que o aplaudiu com entusiasmo. Sem essa segurança na modulação dos sons e palavras, talvez não passasse de uma ideia “engraçadinha”. Unimundo só desliza em sua inegável qualidade quando o jogo de palavras perde sua autonomia para cair no humor fácil, num longo momento em que várias palavras são associadas ou substituídas por nomes de artistas e celebridades, beirando a uma banalidade desnecessária, que de certo modo trai a comicidade teatralmente bem construída até então. A atriz Cecilia Vaz desempenha bem a função da aluna tímida e gaga, sem histrionismos, e adequando sua própria naturalidade às características da personagem, que tem sua expressão bastante limitada no início, pela própria situação de estranhamento com o idioma, ganhando depois gradativa fluência. Essa boa curva de interpretação revela a disciplina da atriz, que soube limitar-se às condições da personagem e cedeu ao colega o brilho exigido pela função ambígua de professor e embusteiro, reforçado pelas já apontadas qualidades do ator. Foram justamente essa simplicidade e a boa química entre ambos que geraram um dos momentos mais delicados do Festival, num gesto que trouxe romantismo em pleno furor cômico, quase ao fim da cena: defendendo o novo idioma mesmo após saber da farsa, a aluna mostra-se grata ao professor por ter superado a gagueira, e numa singela sequência de gestos associados aos vocábulos de Unimundo, eles se beijam, sob os suspiros do público presente ao Teatro Municipal de Niterói. Essa nova relação que se estabelece é logo interrompida pela chegada de um inesperado personagem, um novo aluno que se interessa pelas aulas, encerrando o esquete com a sugestão de que aquele idioma terá continuidade. Tal referência circular, que religa o fim da cena ao seu início, é uma característica marcante nas peças de Teatro do Absurdo, cuja lembrança é evocada também pela relação professor-aluna presente em A Lição, uma das peças mais emblemáticas de Ionesco. Unimundo arejou o Festival com seu humor delicado e com a revelação de um jovem e promissor intérprete, gerando certo otimismo quanto às relações humanas e ao futuro do nosso teatro. Foi o vento necessário da utopia, como o Esperanto, que persiste nas tentativas de alguns movimentos e no imaginário de todos. Crítica

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