sábado, 1 de outubro de 2011

Partes - Crítica Leonardo Simões

Uma mala no centro da cena move-se lentamente, seguida por um ator que também desliza, sendo puxado para a coxia. É dessa forma que se inicia o esquete Partes, apresentado pela Cia. Café Cachorro, que também participou com outro trabalho (Les Demoiselles) no Festival Niterói de Esquetes. Pouco depois, vão surgindo mais atores, também com malas, compondo uma interessante coreografia, na qual os movimentos de cada um têm relação com os dos outros, sem perder sua autonomia, numa justaposição de partituras absolutamente individuais. Durante toda a cena, a iluminação e a música escolhida são muito adequadas e compõem o clima que se alterna entre continuidade/ruptura, sem perda da unidade da cena. A indumentária aponta intensa teatralidade, presente também em todos os elementos expressivos. Os figurinos sugerem atores mambembes, como ruínas de tipos da commedia dell’arte, numa metateatralidade que é evidenciada quando o grupo passa a “perceber” o público, relacionando-se com ele de modo a apresentar formalmente a cena. Mesclam-se, entretanto, situações “imprevistas” que interferem no ofício, sobretudo as que resultam das relações entre os atores, com suas veementes discordâncias estéticas, vaidades, crises existenciais e os vários percalços que todos nós de teatro bem conhecemos. Na intenção de esconder do público esses conflitos (“the show must go on”), um dos atores simula o fechar de uma cortina imaginária, intensificando a proposta de um jogo entre o real e o cênico. Com essa pantomima _ nenhuma palavra é dita durante toda a cena, apesar da intensidade do texto expresso _ o esquete expõe as entranhas do cotidiano de uma trupe, mas o faz através de uma bela metáfora cênica, plena de poesia. O ponto enfocado é a partida de um dos atores. Pelos comentários da companhia no debate realizado ao fim da noite, foi possível saber que esse esquete marca o retorno e a reorganização da companhia, após a saída de um integrante. Daí a multiplicidade de sentidos da palavra simples que foi tão bem escolhida como título: parte pode ser o verbo da partida, mas também o substantivo que significa pedaço, componente, numa síntese que indica um movimento de despedida e um ritual que eterniza. A cena representa, portanto, a catarse de uma questão fundamental para todo grupo teatral: a busca da continuidade em meio a tantas adversidades que provocam rompimentos e dissoluções. O trabalho tem uma relação evidente com o chamado teatro físico ou mais propriamente com o teatro-dança. Os movimentos conseguem instaurar algo além deles próprios, como partes eficazes de uma boa dramaturgia não-verbal, que expressa um profundo envolvimento de cada um dos atores, construindo um todo orgânico. Talvez se possa identificar algo de déjà-vu na cena, seja pela temática ou pelos elementos de que se utiliza, mas a autenticidade presente, o domínio vital com que os atores-autores se dedicam a essa metáfora, supera o possível risco de algo mofado ou esvaziado de sentido. Quase ao final do esquete há um black-out muito demorado. Trata-se de uma observação que também fiz quanto à outra cena da mesma companhia, o que poderia indicar uma opção de ritmo por parte do diretor, mas que merece ser revista. Sendo mais longo que o necessário, tal corte sugeriu ao público que o esquete houvesse acabado após o ator deixar o palco com sua mala, ficando no centro apenas uma parte de seu figurino, fechando-se assim o ciclo aberto pela ação inicial. E, de fato, quase sobra o apêndice que sobrevém à saída do ator que deixa a companhia, mas acaba sendo valorizado pela ação final da atriz que volta e recolhe o traje deixado, acentuando a relação dialética entre ausência e permanência. O esquete foi um bom presente que a homogênea Cia. Café Cachorro ofereceu ao público do Festival; representa um trabalho bem acabado e, ao mesmo tempo, um instante de seu processo criativo. Internalizando a palavra através de poucos elementos, Partes foi um saboroso brinde ao teatro e, especialmente, ao trabalho de grupo.

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