sábado, 1 de outubro de 2011

LES DEMOISELLES - Crítica Leonardo Simões

Ao abrir do pano, vemos três telas com a figura sensual de três silhuetas femininas em atitudes estáticas. O erotismo, assim imediatamente expresso em superfícies planas e difusas, associado ao título do esquete remete-nos à obra Les demoiselles d’Avignon. Neste quadro, Picasso mostra cinco imagens de prostitutas em atitudes sensuais com as distorções típicas da linguagem cubista, que associa pontos de vista distintos numa espécie de perspectiva múltipla. No esquete, essa justaposição de silhuetas paralelas corresponde bem à inspiração pictórica e instauram o ambiente íntimo de um bordel imaginário, acentuado pela música de Piaf, também francesa como a cidade referida no quadro. As imagens até então estáticas ganham movimento e voz com sotaque francês, em confissões verborrágicas, a princípio simultâneas e depois individualizadas, todas girando em torno do homem ideal de cada uma delas. É nesse momento, em função da voz, que percebemos serem aquelas três figuras femininas representadas por atores. Tal percepção já sugere uma distorção da imagem idealizada, o que acentua teatralmente a relação com a pintura que serve de epígrafe à encenação. Há uma modulação vocal, entre a voz originalmente masculina e a intenção de uma voz feminina, que talvez comprometa um pouco o contraste que a cena parece sugerir. Talvez houvesse maior impacto (inclusive preparando melhor a recepção da segunda parte do esquete) caso os atores assumissem as vozes masculinas de forma mais limpa, mesmo estando ainda semi-ocultos pelo véu. O recurso das sombras é bem explorado, incluindo proximidades e afastamentos que criam um interessante jogo de dimensões entre as três figuras de modo não aleatório, mas sugerindo algum nível de interação com o discurso. Esse detalhe já revela a dedicação do grupo à pesquisa de uma linguagem que associa bem os aspectos temáticos com os recursos formais, o que é raro encontrarmos num panorama em que ainda imperam as pirotecnias visuais ou corporais em detrimento da dramaturgia, como se isso por si só qualificasse o “contemporâneo”. Com a subida das respectivas telas, a plena exposição dos atores amplia a relação entre o grotesco e o sublime. Há uma mudança na dinâmica da cena, em função do som de batidas de porta; elas “descem do salto” literalmente, num interessante simbolismo da transição entre o glamour da exposição idealizada e a vida real, com suas angústias e expectativas. A partir daí há uma ruptura, marcada pela mudança de luz num black-out demasiadamente longo, após o qual surge um quarto personagem ao fundo, em silhueta, que parece ser o homem construído pelo discurso das três personagens em seus devaneios. Em seguida, os atores que faziam as três “prostitutas” entram já transformados em inocentes meninos que se ajoelham em torno daquele homem, já no proscênio. Isso sugere uma transformação deste personagem da função de cliente para o papel de pai, numa fusão que por si só possibilitaria inúmeras considerações de ordem psicanalítica. Estranhamente não foi citado na ficha do esquete o nome do ator que faz esse cliente-pai, apesar de sua importância central mesmo sem emitir qualquer palavra. A escolha dele foi adequada como recurso visual, já que é bem alto e encorpado, atendendo à construção idealizada no texto inicial e dando verossimilhança à função paterna da segunda parte. A cena encerra-se após um gestual ritualizado em que o homem prepara um copo de leite que, ao ser batido respinga nos três meninos, sugerindo a associação com uma farta ejaculação. Nesse momento a uma música tem um ritmo forte, em plena oposição à suavidade da música de Piaf na primeira parte. Esse momento final é impactante e até incômodo pelas alusões que faz, gerando certa perplexidade. Tal estado talvez justifique por um lado a demora na reação do público, que pode ter sido causada também pelas sucessivas interrupções ao longo da cena, gerando aquela dúvida se esse black-out significaria mesmo o fim do esquete. Após esses instantes de suspensão, o público do Festival Niterói de Esquetes aplaudiu de modo crescente o trabalho da Companhia Café Cachorro. Destacam-se neste esquete a homogeneidade no trabalho dos atores; o bom domínio na articulação das imagens utilizadas na encenação; e os procedimentos de deslocamento entre o que é apresentado num instante e transformado teatralmente depois. Tais superposições e distorções amparam-se mais uma vez na referência cubista a partir da qual o grupo busca construir sua cena.

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