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domingo, 15 de abril de 2012
terça-feira, 27 de dezembro de 2011
O Infortúnio de Ferdinando (Texto Leonardo Simões)
A commedia dell’arte é uma das principais marcas do Renascimento no teatro universal. Tendo durado praticamente dois séculos, eterniza-se no fazer teatral do ocidente como matriz frequentemente revisitada por artistas posteriores, e mesmo por contemporâneos de outras regiões localizadas fora do seu berço, a Itália. Molière, entre muitos, foi um dramaturgo que bebeu dessa fonte aproveitando em sua obra diversas situações e tipos oriundos daquele repertório, que se baseava na relativa autonomia quanto ao texto escrito.
As representações se compunham do encaixe de diversos laços cômicos (lazzi) que se articulavam em função da situação apresentada, num misto de tradição, técnica e improvisação. Esses lazzi (semelhantes às gags do music-hall inglês) faziam parte do acervo de cada personagem (ou tipo), que era fixo e elaborado por seu intérprete ao longo de toda uma vida: Arlecchino, Brighella, Colombina, Pantalone, Dottore e Pulcinella eram algumas das “máscaras” (personas, em grego) que exigiam alto grau de especialização, ao ponto de serem passadas de pai para filho dentro dos grupos mambembes que circularam pelo centro da Europa a partir do fim da Idade Média.
Onde parassem seus carroções, fosse numa praça em troca de alimentos, ou no castelo de algum nobre, em troca de pouso e algumas moedas de ouro, as companhias ou “famílias teatrais” precisavam se desempenhar bem e agradar ao público ou ao seu anfitrião, como forma imediata de sobrevivência. Essa necessidade de circulação gerou uma de suas principais características: a supremacia da comunicação através do corpo e da sonoridade, mais do que pelo significado das palavras. Aliás, a expressão “cômicos da arte” se origina dessa imposição profissional de seus componentes, que trabalhavam para viver exclusivamente através de sua arte, palavra nesse tempo ainda associada ao termo ofício (trabalho, profissão) e não com o sentido genérico que usamos hoje.
Sendo a Itália um conglomerado de cidades-Estado, cada qual com seu dialeto (a unificação política do idioma italiano somente ocorreu no século XIX), os tipos geravam uma verdadeira miscelânea linguística em cena, por serem criações originárias de diversas regiões. Assim, o corpo do ator e a sonoridade das palavras, marcadas por seu respectivo acento regional, tinham a importante função de comunicar, apesar das palavras, o desenvolvimento das situações, que em geral eram bastante simples e de fácil reconhecimento pelo público. Várias delas persistem no gênero do folhetim e nas telenovelas, com seus ardis frustrados, falsas personalidades, casamentos arranjados, cartas extraviadas, revelações bombásticas e o reconhecimento de parentescos inusitados como recurso arbitrário de um desfecho feliz.
Muitas vezes, o roteiro (ou canevas) era baseado em alguma comédia romana antiga, mas sempre adaptado pelo próprio ato da representação, em função da situação e da necessidade de comunicação direta com o público, o que significa dizer que a performance atoral se sobrepunha a qualquer valor textual. Ao contrário, a preocupação com a dramaturgia escrita, capitaneada mais tarde por Carlo Goldoni, parece ter selado o fim da Commedia dell’arte, que já vinha se exaurindo como prática teatral desgastada. Pode-se dizer que foi um fim relativo, pois como fonte de inspiração técnica e estética a dell’arte continua viva e inesgotável. Uma boa referência sobre esse universo é o filme “A viagem do Capitão Tornado” (no original, Il viaggio di Capitan Fracassa, recentemente encenada no teatro por Marcos Henrique Rego, com uma turma da Escola de Teatro Martins Pena), uma bela associação entre o cinema e o teatro, com o inesquecível e saudoso ator italiano Massimo Troisi.
Esse longo preâmbulo histórico serve para contextualizar o leitor no universo que inspirou o esquete O infortúnio de Ferdinando, que é fruto da pesquisa acadêmica “Comicidade em movimento”, realizada pela diretora e bailarina Luciana Carnout em seu mestrado de Ciência da Arte, na UFF.
Conforme registrou em sua proposta escrita, Luciana buscou “elementos e ferramentas físicas que pudessem colaborar para a construção de um corpo cômico na cena, a partir de exercícios elaborados, estudos de improvisação e criação”.
Além de assumir a Commedia dell’arte como visível referência de sua investigação, através da abordagem de Dario Fo (importante mestre italiano casado com a atriz Franca Rame, descendente direta de uma família de commici dell1arte), Luciana se utilizou também de outras fontes: a antropologia teatral do também italiano Eugenio Barba e o Sistema Laban de Análise do Movimento.
Radiografadas as raízes desse trabalho _ a imensa parte do iceberg que se oculta sob o oceano da representação aos que apenas navegam na paisagem _ pode-se analisar de modo mais objetivo o que foi apresentado e como foi percebido.
A intenção de pesquisa de uma linguagem específica, unindo a investigação teórica à experimentação prática, é o que justifica e valoriza esse esquete. Norteado por essa intenção, pode-se ver um desenrolar de situações cômicas (lazzi) muito bem executadas numa sequência um tanto frágil, não chegando a constituir um enredo eficaz. Entretanto, foi suficiente para sedimentar e dar alguma liga a diversas “unidades mínimas compositivas”, tal como chamava Renzo Vescovi (importante diretor-fundador do Grupo Tascabile di Bergamo, que se dedicava à dell’arte). Essas pequenas unidades, que vão se integrando ao repertório acumulado pelo ator, podem ser utilizadas em cenas mais amplas de modo adequado, conforme o efeito que se pretenda causar.
Embora os enredos (canovaccio) desse período teatral fossem bastante simples como dissemos acima, tinham o valor de mover e reunir os personagens em função de um gancho que estabelecesse as relações de atração e oposição entre eles. A riqueza maior se dava pelo entrelace das representações tipificadas; cada ator se desempenhando em sua máscara conforme as características pré-moldadas, mas com sua contribuição pessoal quanto à execução e ao estilo individual. Era, portanto, um jogo multifacetado e paradoxal, com grande mobilidade gerada pelo confronto de peças fixas (as máscaras); e um espelho que contrapunha a fixidez do tipo à flexibilidade interpretativa do ator dentro daqueles limites rígidos.
O esquete apresentado, limitado a um único intérprete, gerou uma restrição que reduz a experiência como cena, focando realmente o resultado na questão técnica do corpo do ator que se utiliza da comicidade como matriz de movimento. Nesse sentido, o trabalho é muito bem sucedido como ferramenta de pesquisa, mas não se constitui plenamente enquanto cena teatral autônoma (uma das possíveis definições do formato chamado “esquete”).
Sejam esquetes ou espetáculos, os trabalhos que utilizam linguagens específicas (a mímica, o teatro de formas animadas, assim como o clown e outras técnicas circenses) frequentemente apresentam uma fragilidade quanto à construção da dramaturgia. E note-se que aqui esse termo é aplicado num sentido bem amplo, não restrito ao verbo e às construções de caráter literário. Com ou sem palavras, uma situação colocada em cena exige um tratamento dramatúrgico quanto à sua consecutividade, ainda que se constitua intencionalmente de flashes esparsos, sem um encadeamento linear ou lógico.
No sentido mais clássico (afinado com a proposta desse esquete), trata-se de um jogo básico de mostrar e esconder, ocultar e revelar, perder e descobrir; deter-se diante de um obstáculo, mas superá-lo ou desviar-se dele em função de alguma finalidade maior que atrai os personagens, que os move.
Segundo a sinopse apresentada, a finalidade de Ferdinando é pedir sua amada em casamento e, para isso, ele prepara cuidadosamente a esperada cena romântica, com música, flores e vinho.
Na execução, tal finalidade fica muito abafada pelo virtuosismo técnico dos diversos efeitos corporais. O foco acadêmico anteriormente apontado explica esse desvio, mas talvez haja outras razões a considerar.
O fato de ser um solo, como comentado acima, sugere muito mais um número de clown do que uma cena de dell’arte, o que prejudica seu contexto e as relações que embasam o esquete. Apesar dessa distinção, não se pode esquecer o inegável parentesco entre o clown e o arlequim, em sua origem comum latina distante no tempo, sobretudo através do pagliaccio, outra máscara da commedia dell’arte. O fato é que o enredo apresentado carece de contracenação, tanto é que um segundo personagem (a mulher amada) se insinua como necessidade cênica, mas a mesma não se estabelece; talvez porque dentro da proposta ela apareça somente como uma fantasia, uma antecipação idílica de Ferdinando em seu ensaio amoroso, o que não ficou bem claro cenicamente.
Pela fusão de referências, a atuação corporal no estilo da mímica, que seria plenamente autônoma graças ao excelente domínio técnico do ator (Orlando Caldeira), associa-se ao gramelot (sonoridade ininteligível bastante utilizada por Dario Fo, composta por fonemas estrangeiros e onomatopeias que visam recriar aquela miscelânea de dialetos citada no início deste texto). No esquete, essa utilização soa desnecessária e confunde o estilo que a cena pretende adotar, até mesmo infantilizando um pouco o personagem. Vale lembrar que, no teatro, o ideal é fazer o máximo com o mínimo. Ainda que oriundas do mesmo campo (a comicidade), muitas referências superpostas podem acabar implodindo uma cena, em vez de fortalecê-la.
Nenhum dos apontamentos acima invalida a eficácia da comunicação da cena em seu sentido principal que é a comicidade através do corpo. Há momentos preciosos que garantiram a satisfação da plateia (e a sobrevivência da trupe), evidenciada pelo caloroso aplauso que reconheceu a qualidade técnica do trabalho apresentado, sobretudo pela performance do ator.
Há um instante em que o cômico se alia ao poético, numa imagem cênica bem construída de modo simples a partir do domínio corporal: auxiliado pela iluminação, Ferdinando parece flutuar sobre uma cadeira, sugerindo a ilusão de estar sobre um rio.
Uma das ações que provocou muitas risadas foi quando Ferdinando tirou a rolha de uma garrafa ao sentar-se sobre ela, utilizando o seu, digamos, “saca-rolhas natural”. Também o desfecho do esquete se utiliza desse mesmo mecanismo quando, concluindo os preparativos para a cena romântica, Ferdinando se depara com um enorme e corriqueiro problema: após evacuar, constata que acabou o papel higiênico.
Como aponta Henri Bergson (em “O riso”), essa justaposição do sublime (o vinho em sua finalidade romântica; a preparação do pedido de casamento) com o grotesco (a escatologia de extrair uma rolha com o cu; o próprio ato da evacuação) constitui um forte elemento de comicidade exatamente porque causa um efeito de degradação (literalmente, “descer um grau”): do idealismo romântico à corporeidade física. Por isso, segundo exemplos práticos de Bergson, ri-se de alguém que escorrega numa casca de banana, mas ri-se ainda mais se esse alguém for um rico esnobe ou uma grande autoridade; quanto mais alto o pedestal, maior é a queda, diz o ditado. É algo idealizado e elevado por valores abstratos que se desmonta frente aos nossos olhos em função de sua própria fisicalidade, por estar subordinado como todos às leis naturais tantas vezes sublimadas. No teatro, não só rimos desse fenômeno físico imediato como admiramos o ator por saber reproduzi-lo, dominando seu corpo para a execução do resultado pretendido. Há que se dosar a exposição dessa técnica em relação ao efeito.
Assim, embora aproveitado circunstancialmente como um esquete, O infortúnio de Ferdinando configura-se como um exercício cênico bem adequado à pesquisa desenvolvida por Luciana Carnout, através do qual o público presente à primeira noite do 4º Festival Niterói de Esquetes pôde se divertir e apreciar a habilidade técnica do expressivo ator Orlando Caldeira.
segunda-feira, 12 de dezembro de 2011
Crítica UNIMUNDO por Leonardo Simões
O judeu polonês Zamenhof criou em 1887 uma língua que reunia vocábulos e regras gramaticais de diversos idiomas, na esperança da integração de nações e povos de todo o mundo. Era o Esperanto, que apesar do interesse inicial foi duramente combatido durante as duas grandes guerras pelos governos totalitaristas da Rússia, Japão e Alemanha. Inclusive, a ocupação nazista dizimou toda a família do médico criador desse curioso projeto que pode ser considerado como um precursor cultural da ideia de globalização, em seu aspecto mais positivo.
Unimundo é uma língua fictícia semelhante ao Esperanto, que dá título ao esquete apresentado no IV Festival Niterói pela Objetores Companhia de Atores. Aqui, entretanto, esse idioma vai sendo revelado como uma farsa criada por um suposto professor para ludibriar uma aluna gaga que o procura para aprender aquela inusitada linguagem. Porém, o interesse causado por essa brincadeira linguística não é esvaziado por esse embuste. Ao longo do esquete, a aluna vai se envolvendo cada vez mais e passa rapidamente a dominar o código, na mesma medida em que sua chave de compreensão também vai sendo assimilada pela plateia, ampliando gradativamente a comunicação e a comicidade da cena.
Esse deslocamento da linguagem verbal, firmemente dominado pelo casal de atores, reforça a teatralidade do esquete, aproximando-o de alguns exercícios cênicos como a blablação (proposto por Viola Spolin em seu método de improvisação para o teatro) e o grammelot (difundido por Dario Fo em suas pantomimas), que consistem basicamente em dizer um texto sem usar as palavras convencionais, mas apenas onomatopeias e eventualmente um mix de sonoridades estrangeiras, sempre tendo em mente o sentido do texto como um subtexto a ser expresso apesar dos obstáculos verbais. São exercícios bastante conhecidos que refinam a capacidade expressiva do ator e fazem com que utilizem organicamente o corpo como elemento de comunicação (Viola Spolin usa o termo fisicalização como qualidade resultante dessa técnica).
Assim, além de ser uma excelente ginástica interpretativa, Unimundo coloca o espectador no centro da questão fundamental do teatro, que é o sentido da comunicação através, além e apesar das palavras.
Tanto é assim que a impossibilidade da comunicação humana foi o tema central de vários dramaturgos de meados do século XX, cujas obras, por mais distintas que fossem, acabaram sendo arquivadas sob o rótulo genérico de Teatro do absurdo, exatamente porque tratavam como naturais situações insólitas, sobretudo nas relações entre significante e significado. Na verdade, pelo efeito do paradoxo, esse procedimento jogava um olhar de estranhamento sobre os absurdos cotidianos que aceitamos como plenamente naturais. Desde então, diversos autores tem bebido das águas divididas por esse marco histórico da dramaturgia universal, cujos expoentes mais famosos foram o irlandês Samuel Beckett e o romeno Eugene Ionesco.
Esse esquete parte da mesma fonte, mas é focado no efeito cômico gerado pela circunstância e enquadrado numa situação realista, ao contrário das obras do citado período.
É preciso comentar que o texto de Unimundo _ principal valor do esquete apresentado _ é apontado na ficha de inscrição no Festival como autoria do ator Gustavo Berriel, a partir do texto Unamunda incluído na coletânea de cenas curtas Tudo no timing, escrita por David Yves. Esse limite da “adaptação” é discutível, sobretudo quando disfarçada sob o rótulo “livremente inspirado”. Até onde se pôde verificar, o texto desse esquete é muito semelhante ao original, não sendo justificado o crédito que sugere uma nova autoria.
Fora esse aspecto do registro autoral do texto (afinal, as palavras são ou não um mero pretexto?), o que vimos foi um esquete fluente, dinâmico, interessante e muito bem executado dentro da simplicidade de sua proposta. As quebras são bem construídas, apontando a boa direção de Celina Bebianno, que desenvolveu com clareza as potencialidades da situação apresentada.
Todos os elogios são dedicados à eloquente atuação de Gustavo Berriel, que demonstrou pleno domínio da cena. Sua performance, com uma excelente articulação da miscelânea de sonoridades e vocábulos do complicado idioma, foi responsável por grande parte do sucesso desse curioso esquete junto ao público, que o aplaudiu com entusiasmo. Sem essa segurança na modulação dos sons e palavras, talvez não passasse de uma ideia “engraçadinha”.
Unimundo só desliza em sua inegável qualidade quando o jogo de palavras perde sua autonomia para cair no humor fácil, num longo momento em que várias palavras são associadas ou substituídas por nomes de artistas e celebridades, beirando a uma banalidade desnecessária, que de certo modo trai a comicidade teatralmente bem construída até então.
A atriz Cecilia Vaz desempenha bem a função da aluna tímida e gaga, sem histrionismos, e adequando sua própria naturalidade às características da personagem, que tem sua expressão bastante limitada no início, pela própria situação de estranhamento com o idioma, ganhando depois gradativa fluência. Essa boa curva de interpretação revela a disciplina da atriz, que soube limitar-se às condições da personagem e cedeu ao colega o brilho exigido pela função ambígua de professor e embusteiro, reforçado pelas já apontadas qualidades do ator.
Foram justamente essa simplicidade e a boa química entre ambos que geraram um dos momentos mais delicados do Festival, num gesto que trouxe romantismo em pleno furor cômico, quase ao fim da cena: defendendo o novo idioma mesmo após saber da farsa, a aluna mostra-se grata ao professor por ter superado a gagueira, e numa singela sequência de gestos associados aos vocábulos de Unimundo, eles se beijam, sob os suspiros do público presente ao Teatro Municipal de Niterói.
Essa nova relação que se estabelece é logo interrompida pela chegada de um inesperado personagem, um novo aluno que se interessa pelas aulas, encerrando o esquete com a sugestão de que aquele idioma terá continuidade. Tal referência circular, que religa o fim da cena ao seu início, é uma característica marcante nas peças de Teatro do Absurdo, cuja lembrança é evocada também pela relação professor-aluna presente em A Lição, uma das peças mais emblemáticas de Ionesco.
Unimundo arejou o Festival com seu humor delicado e com a revelação de um jovem e promissor intérprete, gerando certo otimismo quanto às relações humanas e ao futuro do nosso teatro. Foi o vento necessário da utopia, como o Esperanto, que persiste nas tentativas de alguns movimentos e no imaginário de todos.
Crítica
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
Ensaio para Macbeth I; Horácio conta Hamlet; Romeu e Julieta?
SHAKESPEARE EM 15 MINUTOS OU 3 ABORDAGENS DA OBRA DO BARDO INGLÊS
Quebrando o protocolo, este texto traz uma análise integrada de três trabalhos apresentados no 4º Festival Niterói de Esquetes, em julho de 2011, a partir do traço comum de que seus textos abordam diferentes obras dentre as mais conhecidas de Shakespeare: Hamlet, Macbeth e Romeu e Julieta. Tal procedimento visa ampliar nossa reflexão, aproveitando melhor as observações sobre esse tipo de apropriação através de um formato tão específico e, também, sobre as diferentes abordagens de cada grupo.
Em edições anteriores, comentamos diversas vezes a utilização de obras mais complexas através desse formato. Entre riscos, tropeços e erros, esse procedimento aponta a transformação que essa modalidade cênica, o esquete, tem apresentado ao longo das décadas, sobretudo nos últimos anos, quando ganhou uma enorme vitrine através dos diversos festivais que proliferam no país.
Do território restrito do puro entretenimento dentro de uma composição mais ampla do espetáculo (os entreatos ou as cenas criadas para o teatro-de-revista, já tão comentados), o formato esquete desliza para um espaço de experimentação dos grupos. Portanto, tem havido uma transição do enfoque principal da recepção (entretenimento do público) para o da produção (exercício criativo).
Podem-se considerar diversos fatores que motivam esse movimento: maior viabilidade frente ao encarecimento do processo econômico da produção; busca de caminhos dramatúrgicos associados às características do grupo; facilidade de circulação para a consolidação do trabalho; lapidação de uma identidade quanto à linguagem cênica; necessidade estrutural de transformar o próprio processo de estudo num produto a ser compartilhado, etc. Não cabe aqui aprofundar essas questões, que muitas vezes se associam como força motriz dessas escolhas. O fato é que três diferentes grupos, com características e opções bastante distintas, encontram-se num Festival apresentando cenas extraídas do mesmo inesgotável universo trágico shakespereano.
O grupo TARJa, que apresentou “HORÁCIO CONTA HAMLET”, foi responsável também, na edição anterior do Festival, pelo esquete Kad’Bunè, uma adaptação de Casa de Bonecas, de Ibsen. Naquele trabalho, o esforço de contração de uma obra complexa, já expresso no curioso título, dominou a criação do grupo e dos diretores Márcio Vito e Lara Siqueira, resultando numa cena de ritmo oligofrênico e com saltos que tornavam difícil a compreensão pelos espectadores que não conhecessem a obra original, embora vigorosa e digna de interesse.
Neste ano, embora a brincadeira cênica sobre a necessidade de compressão temporal também marque presença, o caminho de adaptação dramatúrgica encontrou um gancho bastante interessante, que se transformou num elo de comunicação com a plateia. A história do príncipe da Dinamarca _ que já leva a vantagem de ser mais familiar ao público _ é contada sob outro enfoque, a partir do único personagem “sobrevivente” da tragédia: Horácio, o fiel amigo de Hamlet.
Tal recurso narrativo ganha ainda mais valor por se tratar de um achado, decorrente do processo de estudo do texto original e de suas várias versões, traduções e estudos teóricos, como revela o grupo em sua sintética proposta escrita. Horácio ocupa, sem dúvida, uma posição privilegiada na trama, participando de diversos momentos importantes da peça, sempre numa atitude solidária a Hamlet. Parece um personagem que transcende à história, já que não é movido pelos interesses imediatos e sim por sua identificação com Hamlet. E, no desfecho, é Horácio quem recebe a incumbência de levar a história de seu amigo para além das muralhas da Dinamarca. A personagem é alçada, então, à função de autor, na medida em que se entende uma obra literária ou dramática como uma versão, algo que é contado.
A cena se estrutura a partir desse ponto-de-vista, do Horácio que narra uma história da qual participou, expondo e manipulando momentos da saga de Hamlet, o que permite uma extrema liberdade criativa por parte dos atores, característica da linguagem do TARJa.
Atendendo à necessidade da narrativa sintética, estabelece-se um dinâmico jogo cênico entre os atores na função de assumir os vários personagens. Configura-se, então, uma estrutura que se assemelha a um ensaio, no qual o Horácio-narrador ocupa a função de um diretor ou de um dramaturg, traduzindo as circunstâncias da obra, não para o elenco, mas diretamente para o público.
Embora fielmente ligada às situações principais da trama, a narrativa assume referências contemporâneas. O ator que representa Horácio desempenha bem essa função ambígua, conduzindo a dinâmica da cena e brincando bastante com a oralidade. Ele poderia ir mais longe nesse caminho, caso trabalhasse melhor o domínio do texto a ser dito; há algumas hesitações, correções e repetições que confundem um pouco a brincadeira proposta. O risco é que a autonomia no jogo que lhe é conferida como ator-narrador seja aproveitada como um disfarce dessas imprecisões, o que pode banalizar a linguagem escolhida.
A encenação brinca com os papéis de ator/espectador e também com a relação entre os códigos de duração da obra: os cinco atos da peça comprimidos nos dez a quinze minutos do esquete. Um dos principais elementos dessa tragédia de Shakespeare _ a sucessão de mortes _ é trazido à cena de modo bastante apropriado dentro do jogo dos atores, que pontuam diretamente ao público a morte de seus personagens com a fala “Morri!”, que se repete ao longo do esquete, num divertido recurso clownesco.
A comicidade alcançada não esvazia a densidade dos vários momentos da peça, que é preservada no tom certo pela boa condução do diretor e pela intensa dedicação de um elenco que se apresenta absolutamente homogêneo. Ainda utilizando a metáfora de jogo _ que no teatro é bem concreta em diversos aspectos _ esse numeroso elenco faz lembrar o equilíbrio ideal do time esportivo, em que cada um desempenha no máximo de seu limite a função que lhe é designada no campo, todos articulados em função de uma mesma estratégia. Entretanto, há o recurso de intervenções sonoras executadas no palco através de uma instrumentista colocada ao canto da cena. Essa pontuação sonora, embora seja uma boa ideia, carece ainda de maior elaboração a fim de que tenha uma participação tão orgânica quanto os demais componentes.
Portanto, embora o foco de “Horácio conta Hamlet” seja o texto shakespeareano, sua encenação submete-o ao jogo cênico dos atores, que se apresenta como principal elemento de pesquisa do grupo.
Um tanto diferente foi a abordagem escolhida pela Artecorpo Teatro e Cia. O esquete “ENSAIO PARA MACBETH 1” optou por um vínculo maior com o texto de Shakespeare. Inclusive a costura dos diversos instantes apresentados disfarçou plenamente os saltos provenientes da excelente seleção feita entre as ações principais da primeira metade da tragédia.
Essa intervenção dramatúrgica que se torna invisível estabelece a ilusão de um continuum que abre mão de um elemento épico que manipule as partes, tornando-as fluídas e contínuas para atender a um rendimento dramático. Isso evidencia a opção de utilizar o texto como um exercício de interpretação individual.
Na proposta escrita pelo grupo, há referências a expressões como “corpo da palavra” e “dramaturgia cênica do ator”, dando continuidade à pesquisa sobre a palavra como elemento sonoro e sua relação com o corpo, também presente em seu esquete “Esperando”, multipremiado na edição anterior do Festival, criado a partir da peça de Beckett.
Aqui, entretanto, ao menos nesse aspecto da oralidade, o resultado apresentado se aproximou bastante do que se costuma obter nas boas encenações mais tradicionais de Shakespeare. Não chega ao declamativo, mas resta uma impostação em diversas falas, cuja solenidade está impregnada em nosso inconsciente coletivo devido à importância emblemática de Shakespeare em nossa cultura. Não há nisso nenhum demérito. Teatralmente, sobretudo para a recepção, não importa se chegamos a um mesmo resultado por processos diferentes. O positivo é que, valendo-se dos potentes recursos vocais dos atores, o texto foi muito bem falado, qualidade nem sempre presente nas pretensas encenações contemporâneas da obra do bardo inglês, especialmente entre as montagens de conclusão de cursos de teatro.
O destaque do esquete não está, portanto, na abordagem do texto, mas sim no aspecto plástico da encenação. Vimos um rebuscamento visual que inclusive transcende aos habituais limites de um esquete, sobretudo diante da agilidade imposta pela engrenagem de um festival. Isso nos sugere que esse esquete é uma etapa no processo de uma futura encenação da peça integral, como o próprio título indica.
O cenário é composto por três longos véus verticais que dividem a profundidade do palco; o tecido foi bem escolhido para conferir o peso trágico e a leveza funcional, a um só tempo, além da translucidez, que foi bem aproveitada em momentos importante da ação, como o do assassinato do Rei Duncan. Percebe-se um apuro na concepção e na execução dos adereços, inclusive quanto à pesquisa de materiais, o que também acentua o caráter dramático e mimético da encenação.
A iluminação é detalhista e elaborada, apropriando-se bem desses elementos plásticos da cenografia, e superando as dificuldades impostas pela estrutura de iluminação do Teatro Municipal de Niterói (que não possui varas de frente), além das já citadas circunstâncias limitantes de um evento coletivo. Trabalhou bem tanto o espaço geral, com um claro-escuro adequado ao clima, quanto os recortes, que exploraram a máscara expressiva dos atores nos momentos de maior introspecção. Houve também um uso expressivo da sombra, inclusive com função narrativa em determinado momento. O único e mínimo senão foi quanto à obviedade na opção de cor da luz (de tom rosa ou avermelhado) na cena em que Lady Macbeth (Rachel Palmeirim) lê a carta do marido. Essa cena ocorre no camarote mais próximo ao palco, numa referência direta ao balcão do teatro elisabetano que ficou eternizado na cena da sacada de Romeu e Julieta. Aliás, esse posicionamento da atriz, com uma carta na mão fazendo sombra e quase à frente do rosto, também dificultou um pouco a cena da leitura (único momento em que a compreensão do texto e a plasticidade ficaram comprometidas).
Os figurinos também compõem de forma harmônica a plasticidade do esquete, sendo bem resolvidos com simplicidade e porte. Um detalhe que pode ser facilmente corrigido: uma gola que deu a impressão de incomodar a atriz em sua movimentação. A opção de um Macbeth com o torso desnudo é interessante por trazer um elemento expressionista que quebra a tendência mimética da cena (o óbvio seria uma armadura), entretanto talvez se possa pensar melhor a adequação desse corpo exposto ao tipo físico do ator (Reynaldo Dutra). Ainda no que se refere à indumentária, a opção pela cor branca para ambos também significa uma quebra e um contraponto à natureza sombria desses personagens, especialmente para Lady Macbeth, que é tradicionalmente representada de negro numa frequente alusão à sua função de sombra dominante sobre o vacilante marido.
Ainda como elemento plástico bem aplicado à ação, vale citar a instigante opção pela cor do sangue que embebe o punhal que feriu mortalmente o Rei Duncan e que suja as mãos e a alma do casal assassino: em lugar do vermelho realista do sangue cenográfico, optou-se por uma tinta de cor azul, simbólica do sangue real (de realeza e não de realidade).
A encenação também se apropriou bem dos recursos disponíveis no Teatro Municipal de Niterói, entre os quais a parede de tijolos ao fundo, numa mutação do espaço que conferiu a dimensão do palácio de Macbeth. Nessa adaptação, foram bem escolhidas as falas que finalizam o esquete com um toque de metateatralidade. Através de uma metáfora em que o poeta compara a existência à efemeridade do fenômeno teatral, o desfecho é bem apropriado ao ambiente de um festival de teatro:
MacBeth – Ter consciência do ato que pratiquei – Melhor seria perder conhecimento de mim mesmo! Breve candeia, apaga-te!
Lady – Que a vida é uma sombra ambulante; um pobre ator que gesticula em cena uma hora ou duas, depois não se ouve mais;
MacBeth – Um conto cheio de som e fúria, dito por um louco significando nada.
Rachel Palmeirim e Reynaldo Dutra encarnam bem a personificação da ambição pelo poder, representada em níveis diferentes pelo casal de personagens dessa tragédia. A interpretação de ambos é equilibrada e apresenta recursos técnicos que correspondem bem à proposta expressa pela encenação, embora a suposta pesquisa vocal-corporal talvez os tenha levado àquele tom solene quase declamativo que se aproxima da embocadura estereotipada das tragédias de Shakespeare, conforme foi comentado acima.
“Ensaio para Macbeth 1” é, portanto, um esquete que se apropria do texto de Shakespeare como seu próprio corpo e que pesquisa os meios, sobretudo visuais, de aproximar essa tragédia e o seu sentido da sensibilidade do espectador atual.
Dentre os três esquetes aqui abordados, o que mais se distancia da obra original, quanto ao tema e à forma, é “ROMEU E JULIETA?”, que praticamente se utiliza do texto de Shakespeare simplesmente como pontapé inicial para discutir aspectos do fazer teatral, principalmente quanto às relações entre a liberdade criativa do ator e o cerceamento identificado com a figura do diretor.
O cenário é composto por dois conjuntos de fios ou cordas suspensas, um de cada lado do palco. Romeu entra pela plateia escura, auxiliado por uma lanterna que carrega, e é desse plano mais baixo que ele inicia o célebre diálogo do balcão de Julieta. Ela desperta em seu quarto, delimitado no palco, por um daqueles conjuntos de cordas, formando uma espécie de cela. O figurino de ambos é claro e despojado. Esse elemento associa-se à visão de uma Julieta “aprisionada” e um Romeu “fugitivo”, levando-me, particularmente, a perceber a situação inicial como a metáfora de um manicômio, o que parece não ter sido uma alusão intencional por parte da encenação. Acredito que essa percepção tenha sido favorecida, também, pelo tom de delírio, quase surto, com que a atriz Bruma Trindade diz o seu solilóquio, chegando a morder seu ursinho de pelúcia, avançando um pouco o limite de uma crise que caracterizasse simplesmente a adolescência da personagem.
De todo modo, o que se percebe logo de início é um texto que, embora fiel ao original, está deslocado de seu contexto original para outro que não fica bem definido, talvez pela associação concomitante de metáforas múltiplas.
Numa transição, ouve-se um efeito sonoro estranho que pontua a intervenção de uma voz do diretor, a partir do qual pudemos perceber que se tratava de um ensaio. Num efeito de metateatralidade, quebra-se a suposta representação de Romeu e Julieta e entra em cena o assunto central do esquete: a relação ator-diretor e os limites da liberdade criativa.
A discussão evidencia uma crítica ao que considera como a desvalorização do ofício do ator. Expandindo esse tema, aborda ainda a relação com o público e as dificuldades de produção (patrocínio) como também limitadores do potencial criativo do teatro.
Num recurso metalinguístico o ator que representa Romeu (Brian Amorim) recorre ao Dicionário de Teatro, de Patrice Pavis, lendo o verbete que situa o ator “no próprio cerne do acontecimento teatral”. A partir da constatação do esvaziamento dessa centralidade que lhe define, o ator-personagem do esquete tem uma crise e, ao rebelar-se contra o domínio opressivo das indicações do diretor, representado por aquele conjunto de cordas que permanecia inerte até então, nele se emaranha, ficando também aprisionado. O ensaio é retomado sob a orientação do diretor (representado por uma voz off), e o texto passa a ser dito de modo absolutamente mecânico, quase robótico. Ao fim do esquete, com ambos os atores absolutamente presos nesses fios, como marionetes, ouvem-se diversas vozes, também em off: os comentários banais do público após uma suposta apresentação.
Ainda que se considerem as intenções que fundamentam a cena, persiste um desnível, quase uma contradição, no tom da interpretação do ator e da atriz. Ele está mais próximo ao texto, quase colado na interpretação mais convencional de um Romeu angustiado, enquanto ela atua com uma intensidade descontrolada, dificultando inclusive a compreensão das falas. Há uma espécie de anulação na relação entre um e outro; e parece estranho que seja justamente ele que se rebele quanto à opressão. Noutro aspecto ligado à interpretação, percebe-se que a quebra da “representação” para o “ensaio” carece de maior elaboração, para que os atores alcancem de imediato “outro tom de verdade”, que somente aos poucos foi se estabelecendo.
O efeito sonoro usado para pontuar as quebras e preparar as intervenções do diretor também pode ser mais elaborado. Sua execução fica distante do efeito que parece pretender, mesmo levando em conta o estranhamento desejado para a função que essa quebra exerce no todo.
Constituído a partir de um trabalho acadêmico, um exercício de aula, o esquete transforma sua aparente fragilidade _ as sucessivas rupturas e desvios da ação _ num elemento de indagação do lado avesso do fenômeno teatral.
A crítica veiculada é muito interessante e pertinente ao universo de um festival, sobretudo quando reúne muitos estudantes e atores em formação, para os quais essa tensão entre liberdade e limite criativo representa uma questão mais pulsante. A forma como foi colocada em cena essa discussão aponta uma busca intensa e criativa desses artistas, incluindo o diretor (Eduardo Landin, premiado nesta edição do Festival), por uma significação para o seu ofício em meio a tantas distorções e descaminhos que dominam o panorama teatral que os espera.
Voltando a uma análise mais geral, é interessante verificar a adequação dos títulos desses três esquetes aqui destacados e como eles revelam a diferente abordagem de cada um quanto às peças originais de Shakespeare.
Horácio conta Hamlet tem seu foco no ponto-de-vista, em quem é o veículo da narração dessa história em quinze minutos. Assim, sua abordagem está ligada não à trama em si, ou à negação desta, mas na forma criativa pela qual a história pode ser contada. Traduz, portanto, uma pesquisa formal de encenação e de dramaturgia do grupo, experimentando os limites de distorção do objeto em função de sua mediação com o público e das circunstâncias da representação (no caso, o tempo comprimido).
Ensaio para Macbeth 1 indica um fragmento (Ensaio 1) de um processo para se chegar ao todo (a montagem da peça Macbeth). Os recortes e encaixes do texto, a ambientação, a indumentária e a interpretação visam conferir uma fluência dramática e uma credibilidade à narrativa, apesar do uso eventual de elementos de distanciamento simbólico, como o sangue de cor azul. Trata-se, portanto, de um trabalho que tem como foco principal o próprio texto da tragédia; e a pesquisa dedica-se à forma de coloca-la em cena e de interpretá-la.
Por fim, o esquete Romeu e Julieta? traz em si a indagação honesta. Ele já avisa: será que é da peça de Shakespeare que iremos tratar? Se considerarmos o papel emblemático que a tragédia dos amantes de Verona ocupa no imaginário coletivo como sinônimo de “teatro”, podemos dizer que esse título antecipa a discussão apresentada pelo esquete, que coloca em questão o próprio fenômeno teatral tal como é exercido hoje.
Somada a todas as experiências positivas que temos tentado registrar, o 4º Festival Niterói de Esquetes nos trouxe essa interessante degustação da obra de Shakespeare em três de seus múltiplos e infinitos aspectos, com um sabor temperado pela dedicação desses grupos e encenadores em suas respectivas pesquisas.
sábado, 1 de outubro de 2011
Solo - Crítica Leonardo Simões
O mundo do teatro é, ao mesmo tempo, imensamente vasto e infinitamente pequeno. Felizmente, é comum que pessoas da mesma “tribo” se reencontrem em diversos momentos. Antes de iniciar esta análise, preciso abrir um parêntesis para dizer que Solo proporcionou um desses reencontros: o ator-criador desse esquete foi meu aluno no curso que mantive por longo tempo em Niterói, o Camarim Curso Básico de Teatro, nas décadas de 1980 e 1990. Não sei precisar exatamente o ano em que ele cursou, mas deve ter sido em 1989. Não é raro ver ex-alunos nesses eventos (tenho encontrado muitos, como parceiros de criação ou assistindo-os nos palcos), mas quis destacar o Cesar Tavares por ter sido praticamente a primeira vez que nos encontramos desde então, e também porque à época ele era um desses alunos muito tímidos que o professor internamente duvida que vá adiante, num dos equívocos didáticos que cometemos aqui e ali. O fato é que ele foi, construiu uma carreira, trabalhou em espetáculos e companhias importantes e adentrou o território dos clowns, onde tem fincado sua bandeira.
Dito isso, exorcizo aqui a dificuldade que o crítico normalmente encontra ao escrever sobre alguém que se conhece e de cujo processo ele foi partícipe de alguma maneira. O importante é que foi um reencontro feliz.
Analisando mais objetivamente o esquete, pode-se dizer que Solo se insere naquela categoria de entreato cômico, que já abordei tantas vezes em edições anteriores deste Festival Niterói de Esquetes. Sobretudo pelo uso da linguagem de clown, o esquete retoma a função original que esse formato exercia nas apresentações de variedades e nas revistas, quando um comediante ocupava o proscênio para entreter o público, enquanto atrás da cortina operava-se a mudança de cenários. Isso não é nenhum demérito, somente aponta o vínculo com uma tradição no que se refere ao formato esquete, que tem se deslizado para outras finalidades, como também já comentamos em textos anteriores.
César constrói seu personagem como um anti-palhaço: aquele que tenta fazer graça, mas não consegue. Nesse gesto verdadeiramente patético, de contraste entre a intenção e a eficácia da finalidade do palhaço, o esquete tem uma ótima entrada em que toda a expressividade do ator já comunica de imediato essa inadequação, esse “entrar derrotado”.
O desenvolvimento é menos feliz, talvez exatamente porque o principal já foi entregue logo na entrada. Seguem-se um discurso confessional (em que ele explicita que não consegue fazer rir) e algumas gags propositalmente ineficazes. Mesmo quando parece buscar o riso, resta-nos a impressão de que os tempos são meio antecipados. A desistência vem muito antes da persistência, o que não colabora para constituir a verdadeira quebra que talvez gerasse a fluência do riso, no conceito clássico de Henri Bérgson (O riso).
Isso evidencia o aspecto mais frágil do esquete que é a dramaturgia, não no sentido do texto escrito, mas de conexão entre as situações, de ritmo em relação ao que acontece (ou não acontece) em cena. Talvez a ausência da interação com o texto de outro e também de um olhar de fora resultem numa concentração criativa pouco eficaz.
Vale registrar que, no debate realizado ao fim desse primeiro dia de Festival, o próprio Cesar Tavares considerou esse esquete como o exercício de uma cena em construção. Para tanto, ele se utiliza de um núcleo elaborado anteriormente, em que canta um embróglio extraído da cultura popular, que relata uma trapalhada familiar com todo tipo de troca de parentescos. Ainda assim, esse núcleo não se encontra bem encaixado, soando como um desvio ao que foi construído anteriormente. Além disso, esse número musical talvez alcançasse maior eficiência e comicidade se o ator dominasse algum instrumento musical para seu próprio acompanhamento, recurso regularmente utilizado pelos clowns.
O destaque deste trabalho, além da já citada expressividade do ator no campo do patético, vai para o desfecho da cena, que também não se conecta com o restante e, por isso mesmo, sobressai como uma surpresa em relação ao que já estava dado desde o início. Esse momento é construído por uma música instrumental que alude ao universo circense. O som é acentuado por uma luz que vem da coxia, na qual o ator visualiza a passagem do imaginário circo. Se recorrermos à tradição (através de Charles Chaplin, Harold Loyd e Buster Keaton, por exemplo), será fácil reconhecermos que o patético se combina bem com o lírico, levando-nos a uma emoção paralela ao riso. Disse isso para não dizer “que está para além do riso”, o que poderia sugerir um incoerente juízo de valor entre “gêneros”, em que se costuma cair com tanta frequência.
Assim, fascinado por essa imagem, o clown de César Tavares deixa o palco, reforçando a idéia de incompletude, de algo que ficou por ser feito. Esse instante final, em que o som e a luz são utilizados poeticamente, traz uma efetiva teatralidade até então negadas à cena. A reação do público, vaga durante os momentos supostamente cômicos, transformou-se em reverente aplauso nesse desfecho lírico.
LES DEMOISELLES - Crítica Leonardo Simões
Ao abrir do pano, vemos três telas com a figura sensual de três silhuetas femininas em atitudes estáticas. O erotismo, assim imediatamente expresso em superfícies planas e difusas, associado ao título do esquete remete-nos à obra Les demoiselles d’Avignon. Neste quadro, Picasso mostra cinco imagens de prostitutas em atitudes sensuais com as distorções típicas da linguagem cubista, que associa pontos de vista distintos numa espécie de perspectiva múltipla.
No esquete, essa justaposição de silhuetas paralelas corresponde bem à inspiração pictórica e instauram o ambiente íntimo de um bordel imaginário, acentuado pela música de Piaf, também francesa como a cidade referida no quadro. As imagens até então estáticas ganham movimento e voz com sotaque francês, em confissões verborrágicas, a princípio simultâneas e depois individualizadas, todas girando em torno do homem ideal de cada uma delas. É nesse momento, em função da voz, que percebemos serem aquelas três figuras femininas representadas por atores.
Tal percepção já sugere uma distorção da imagem idealizada, o que acentua teatralmente a relação com a pintura que serve de epígrafe à encenação. Há uma modulação vocal, entre a voz originalmente masculina e a intenção de uma voz feminina, que talvez comprometa um pouco o contraste que a cena parece sugerir. Talvez houvesse maior impacto (inclusive preparando melhor a recepção da segunda parte do esquete) caso os atores assumissem as vozes masculinas de forma mais limpa, mesmo estando ainda semi-ocultos pelo véu.
O recurso das sombras é bem explorado, incluindo proximidades e afastamentos que criam um interessante jogo de dimensões entre as três figuras de modo não aleatório, mas sugerindo algum nível de interação com o discurso. Esse detalhe já revela a dedicação do grupo à pesquisa de uma linguagem que associa bem os aspectos temáticos com os recursos formais, o que é raro encontrarmos num panorama em que ainda imperam as pirotecnias visuais ou corporais em detrimento da dramaturgia, como se isso por si só qualificasse o “contemporâneo”.
Com a subida das respectivas telas, a plena exposição dos atores amplia a relação entre o grotesco e o sublime. Há uma mudança na dinâmica da cena, em função do som de batidas de porta; elas “descem do salto” literalmente, num interessante simbolismo da transição entre o glamour da exposição idealizada e a vida real, com suas angústias e expectativas.
A partir daí há uma ruptura, marcada pela mudança de luz num black-out demasiadamente longo, após o qual surge um quarto personagem ao fundo, em silhueta, que parece ser o homem construído pelo discurso das três personagens em seus devaneios. Em seguida, os atores que faziam as três “prostitutas” entram já transformados em inocentes meninos que se ajoelham em torno daquele homem, já no proscênio. Isso sugere uma transformação deste personagem da função de cliente para o papel de pai, numa fusão que por si só possibilitaria inúmeras considerações de ordem psicanalítica.
Estranhamente não foi citado na ficha do esquete o nome do ator que faz esse cliente-pai, apesar de sua importância central mesmo sem emitir qualquer palavra. A escolha dele foi adequada como recurso visual, já que é bem alto e encorpado, atendendo à construção idealizada no texto inicial e dando verossimilhança à função paterna da segunda parte.
A cena encerra-se após um gestual ritualizado em que o homem prepara um copo de leite que, ao ser batido respinga nos três meninos, sugerindo a associação com uma farta ejaculação. Nesse momento a uma música tem um ritmo forte, em plena oposição à suavidade da música de Piaf na primeira parte. Esse momento final é impactante e até incômodo pelas alusões que faz, gerando certa perplexidade. Tal estado talvez justifique por um lado a demora na reação do público, que pode ter sido causada também pelas sucessivas interrupções ao longo da cena, gerando aquela dúvida se esse black-out significaria mesmo o fim do esquete. Após esses instantes de suspensão, o público do Festival Niterói de Esquetes aplaudiu de modo crescente o trabalho da Companhia Café Cachorro.
Destacam-se neste esquete a homogeneidade no trabalho dos atores; o bom domínio na articulação das imagens utilizadas na encenação; e os procedimentos de deslocamento entre o que é apresentado num instante e transformado teatralmente depois. Tais superposições e distorções amparam-se mais uma vez na referência cubista a partir da qual o grupo busca construir sua cena.
Partes - Crítica Leonardo Simões
Uma mala no centro da cena move-se lentamente, seguida por um ator que também desliza, sendo puxado para a coxia. É dessa forma que se inicia o esquete Partes, apresentado pela Cia. Café Cachorro, que também participou com outro trabalho (Les Demoiselles) no Festival Niterói de Esquetes. Pouco depois, vão surgindo mais atores, também com malas, compondo uma interessante coreografia, na qual os movimentos de cada um têm relação com os dos outros, sem perder sua autonomia, numa justaposição de partituras absolutamente individuais.
Durante toda a cena, a iluminação e a música escolhida são muito adequadas e compõem o clima que se alterna entre continuidade/ruptura, sem perda da unidade da cena. A indumentária aponta intensa teatralidade, presente também em todos os elementos expressivos. Os figurinos sugerem atores mambembes, como ruínas de tipos da commedia dell’arte, numa metateatralidade que é evidenciada quando o grupo passa a “perceber” o público, relacionando-se com ele de modo a apresentar formalmente a cena. Mesclam-se, entretanto, situações “imprevistas” que interferem no ofício, sobretudo as que resultam das relações entre os atores, com suas veementes discordâncias estéticas, vaidades, crises existenciais e os vários percalços que todos nós de teatro bem conhecemos. Na intenção de esconder do público esses conflitos (“the show must go on”), um dos atores simula o fechar de uma cortina imaginária, intensificando a proposta de um jogo entre o real e o cênico.
Com essa pantomima _ nenhuma palavra é dita durante toda a cena, apesar da intensidade do texto expresso _ o esquete expõe as entranhas do cotidiano de uma trupe, mas o faz através de uma bela metáfora cênica, plena de poesia. O ponto enfocado é a partida de um dos atores. Pelos comentários da companhia no debate realizado ao fim da noite, foi possível saber que esse esquete marca o retorno e a reorganização da companhia, após a saída de um integrante. Daí a multiplicidade de sentidos da palavra simples que foi tão bem escolhida como título: parte pode ser o verbo da partida, mas também o substantivo que significa pedaço, componente, numa síntese que indica um movimento de despedida e um ritual que eterniza. A cena representa, portanto, a catarse de uma questão fundamental para todo grupo teatral: a busca da continuidade em meio a tantas adversidades que provocam rompimentos e dissoluções.
O trabalho tem uma relação evidente com o chamado teatro físico ou mais propriamente com o teatro-dança. Os movimentos conseguem instaurar algo além deles próprios, como partes eficazes de uma boa dramaturgia não-verbal, que expressa um profundo envolvimento de cada um dos atores, construindo um todo orgânico.
Talvez se possa identificar algo de déjà-vu na cena, seja pela temática ou pelos elementos de que se utiliza, mas a autenticidade presente, o domínio vital com que os atores-autores se dedicam a essa metáfora, supera o possível risco de algo mofado ou esvaziado de sentido.
Quase ao final do esquete há um black-out muito demorado. Trata-se de uma observação que também fiz quanto à outra cena da mesma companhia, o que poderia indicar uma opção de ritmo por parte do diretor, mas que merece ser revista. Sendo mais longo que o necessário, tal corte sugeriu ao público que o esquete houvesse acabado após o ator deixar o palco com sua mala, ficando no centro apenas uma parte de seu figurino, fechando-se assim o ciclo aberto pela ação inicial. E, de fato, quase sobra o apêndice que sobrevém à saída do ator que deixa a companhia, mas acaba sendo valorizado pela ação final da atriz que volta e recolhe o traje deixado, acentuando a relação dialética entre ausência e permanência.
O esquete foi um bom presente que a homogênea Cia. Café Cachorro ofereceu ao público do Festival; representa um trabalho bem acabado e, ao mesmo tempo, um instante de seu processo criativo. Internalizando a palavra através de poucos elementos, Partes foi um saboroso brinde ao teatro e, especialmente, ao trabalho de grupo.
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