terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O Infortúnio de Ferdinando (Texto Leonardo Simões)

A commedia dell’arte é uma das principais marcas do Renascimento no teatro universal. Tendo durado praticamente dois séculos, eterniza-se no fazer teatral do ocidente como matriz frequentemente revisitada por artistas posteriores, e mesmo por contemporâneos de outras regiões localizadas fora do seu berço, a Itália. Molière, entre muitos, foi um dramaturgo que bebeu dessa fonte aproveitando em sua obra diversas situações e tipos oriundos daquele repertório, que se baseava na relativa autonomia quanto ao texto escrito. As representações se compunham do encaixe de diversos laços cômicos (lazzi) que se articulavam em função da situação apresentada, num misto de tradição, técnica e improvisação. Esses lazzi (semelhantes às gags do music-hall inglês) faziam parte do acervo de cada personagem (ou tipo), que era fixo e elaborado por seu intérprete ao longo de toda uma vida: Arlecchino, Brighella, Colombina, Pantalone, Dottore e Pulcinella eram algumas das “máscaras” (personas, em grego) que exigiam alto grau de especialização, ao ponto de serem passadas de pai para filho dentro dos grupos mambembes que circularam pelo centro da Europa a partir do fim da Idade Média. Onde parassem seus carroções, fosse numa praça em troca de alimentos, ou no castelo de algum nobre, em troca de pouso e algumas moedas de ouro, as companhias ou “famílias teatrais” precisavam se desempenhar bem e agradar ao público ou ao seu anfitrião, como forma imediata de sobrevivência. Essa necessidade de circulação gerou uma de suas principais características: a supremacia da comunicação através do corpo e da sonoridade, mais do que pelo significado das palavras. Aliás, a expressão “cômicos da arte” se origina dessa imposição profissional de seus componentes, que trabalhavam para viver exclusivamente através de sua arte, palavra nesse tempo ainda associada ao termo ofício (trabalho, profissão) e não com o sentido genérico que usamos hoje. Sendo a Itália um conglomerado de cidades-Estado, cada qual com seu dialeto (a unificação política do idioma italiano somente ocorreu no século XIX), os tipos geravam uma verdadeira miscelânea linguística em cena, por serem criações originárias de diversas regiões. Assim, o corpo do ator e a sonoridade das palavras, marcadas por seu respectivo acento regional, tinham a importante função de comunicar, apesar das palavras, o desenvolvimento das situações, que em geral eram bastante simples e de fácil reconhecimento pelo público. Várias delas persistem no gênero do folhetim e nas telenovelas, com seus ardis frustrados, falsas personalidades, casamentos arranjados, cartas extraviadas, revelações bombásticas e o reconhecimento de parentescos inusitados como recurso arbitrário de um desfecho feliz. Muitas vezes, o roteiro (ou canevas) era baseado em alguma comédia romana antiga, mas sempre adaptado pelo próprio ato da representação, em função da situação e da necessidade de comunicação direta com o público, o que significa dizer que a performance atoral se sobrepunha a qualquer valor textual. Ao contrário, a preocupação com a dramaturgia escrita, capitaneada mais tarde por Carlo Goldoni, parece ter selado o fim da Commedia dell’arte, que já vinha se exaurindo como prática teatral desgastada. Pode-se dizer que foi um fim relativo, pois como fonte de inspiração técnica e estética a dell’arte continua viva e inesgotável. Uma boa referência sobre esse universo é o filme “A viagem do Capitão Tornado” (no original, Il viaggio di Capitan Fracassa, recentemente encenada no teatro por Marcos Henrique Rego, com uma turma da Escola de Teatro Martins Pena), uma bela associação entre o cinema e o teatro, com o inesquecível e saudoso ator italiano Massimo Troisi. Esse longo preâmbulo histórico serve para contextualizar o leitor no universo que inspirou o esquete O infortúnio de Ferdinando, que é fruto da pesquisa acadêmica “Comicidade em movimento”, realizada pela diretora e bailarina Luciana Carnout em seu mestrado de Ciência da Arte, na UFF. Conforme registrou em sua proposta escrita, Luciana buscou “elementos e ferramentas físicas que pudessem colaborar para a construção de um corpo cômico na cena, a partir de exercícios elaborados, estudos de improvisação e criação”. Além de assumir a Commedia dell’arte como visível referência de sua investigação, através da abordagem de Dario Fo (importante mestre italiano casado com a atriz Franca Rame, descendente direta de uma família de commici dell1arte), Luciana se utilizou também de outras fontes: a antropologia teatral do também italiano Eugenio Barba e o Sistema Laban de Análise do Movimento. Radiografadas as raízes desse trabalho _ a imensa parte do iceberg que se oculta sob o oceano da representação aos que apenas navegam na paisagem _ pode-se analisar de modo mais objetivo o que foi apresentado e como foi percebido. A intenção de pesquisa de uma linguagem específica, unindo a investigação teórica à experimentação prática, é o que justifica e valoriza esse esquete. Norteado por essa intenção, pode-se ver um desenrolar de situações cômicas (lazzi) muito bem executadas numa sequência um tanto frágil, não chegando a constituir um enredo eficaz. Entretanto, foi suficiente para sedimentar e dar alguma liga a diversas “unidades mínimas compositivas”, tal como chamava Renzo Vescovi (importante diretor-fundador do Grupo Tascabile di Bergamo, que se dedicava à dell’arte). Essas pequenas unidades, que vão se integrando ao repertório acumulado pelo ator, podem ser utilizadas em cenas mais amplas de modo adequado, conforme o efeito que se pretenda causar. Embora os enredos (canovaccio) desse período teatral fossem bastante simples como dissemos acima, tinham o valor de mover e reunir os personagens em função de um gancho que estabelecesse as relações de atração e oposição entre eles. A riqueza maior se dava pelo entrelace das representações tipificadas; cada ator se desempenhando em sua máscara conforme as características pré-moldadas, mas com sua contribuição pessoal quanto à execução e ao estilo individual. Era, portanto, um jogo multifacetado e paradoxal, com grande mobilidade gerada pelo confronto de peças fixas (as máscaras); e um espelho que contrapunha a fixidez do tipo à flexibilidade interpretativa do ator dentro daqueles limites rígidos. O esquete apresentado, limitado a um único intérprete, gerou uma restrição que reduz a experiência como cena, focando realmente o resultado na questão técnica do corpo do ator que se utiliza da comicidade como matriz de movimento. Nesse sentido, o trabalho é muito bem sucedido como ferramenta de pesquisa, mas não se constitui plenamente enquanto cena teatral autônoma (uma das possíveis definições do formato chamado “esquete”). Sejam esquetes ou espetáculos, os trabalhos que utilizam linguagens específicas (a mímica, o teatro de formas animadas, assim como o clown e outras técnicas circenses) frequentemente apresentam uma fragilidade quanto à construção da dramaturgia. E note-se que aqui esse termo é aplicado num sentido bem amplo, não restrito ao verbo e às construções de caráter literário. Com ou sem palavras, uma situação colocada em cena exige um tratamento dramatúrgico quanto à sua consecutividade, ainda que se constitua intencionalmente de flashes esparsos, sem um encadeamento linear ou lógico. No sentido mais clássico (afinado com a proposta desse esquete), trata-se de um jogo básico de mostrar e esconder, ocultar e revelar, perder e descobrir; deter-se diante de um obstáculo, mas superá-lo ou desviar-se dele em função de alguma finalidade maior que atrai os personagens, que os move. Segundo a sinopse apresentada, a finalidade de Ferdinando é pedir sua amada em casamento e, para isso, ele prepara cuidadosamente a esperada cena romântica, com música, flores e vinho. Na execução, tal finalidade fica muito abafada pelo virtuosismo técnico dos diversos efeitos corporais. O foco acadêmico anteriormente apontado explica esse desvio, mas talvez haja outras razões a considerar. O fato de ser um solo, como comentado acima, sugere muito mais um número de clown do que uma cena de dell’arte, o que prejudica seu contexto e as relações que embasam o esquete. Apesar dessa distinção, não se pode esquecer o inegável parentesco entre o clown e o arlequim, em sua origem comum latina distante no tempo, sobretudo através do pagliaccio, outra máscara da commedia dell’arte. O fato é que o enredo apresentado carece de contracenação, tanto é que um segundo personagem (a mulher amada) se insinua como necessidade cênica, mas a mesma não se estabelece; talvez porque dentro da proposta ela apareça somente como uma fantasia, uma antecipação idílica de Ferdinando em seu ensaio amoroso, o que não ficou bem claro cenicamente. Pela fusão de referências, a atuação corporal no estilo da mímica, que seria plenamente autônoma graças ao excelente domínio técnico do ator (Orlando Caldeira), associa-se ao gramelot (sonoridade ininteligível bastante utilizada por Dario Fo, composta por fonemas estrangeiros e onomatopeias que visam recriar aquela miscelânea de dialetos citada no início deste texto). No esquete, essa utilização soa desnecessária e confunde o estilo que a cena pretende adotar, até mesmo infantilizando um pouco o personagem. Vale lembrar que, no teatro, o ideal é fazer o máximo com o mínimo. Ainda que oriundas do mesmo campo (a comicidade), muitas referências superpostas podem acabar implodindo uma cena, em vez de fortalecê-la. Nenhum dos apontamentos acima invalida a eficácia da comunicação da cena em seu sentido principal que é a comicidade através do corpo. Há momentos preciosos que garantiram a satisfação da plateia (e a sobrevivência da trupe), evidenciada pelo caloroso aplauso que reconheceu a qualidade técnica do trabalho apresentado, sobretudo pela performance do ator. Há um instante em que o cômico se alia ao poético, numa imagem cênica bem construída de modo simples a partir do domínio corporal: auxiliado pela iluminação, Ferdinando parece flutuar sobre uma cadeira, sugerindo a ilusão de estar sobre um rio. Uma das ações que provocou muitas risadas foi quando Ferdinando tirou a rolha de uma garrafa ao sentar-se sobre ela, utilizando o seu, digamos, “saca-rolhas natural”. Também o desfecho do esquete se utiliza desse mesmo mecanismo quando, concluindo os preparativos para a cena romântica, Ferdinando se depara com um enorme e corriqueiro problema: após evacuar, constata que acabou o papel higiênico. Como aponta Henri Bergson (em “O riso”), essa justaposição do sublime (o vinho em sua finalidade romântica; a preparação do pedido de casamento) com o grotesco (a escatologia de extrair uma rolha com o cu; o próprio ato da evacuação) constitui um forte elemento de comicidade exatamente porque causa um efeito de degradação (literalmente, “descer um grau”): do idealismo romântico à corporeidade física. Por isso, segundo exemplos práticos de Bergson, ri-se de alguém que escorrega numa casca de banana, mas ri-se ainda mais se esse alguém for um rico esnobe ou uma grande autoridade; quanto mais alto o pedestal, maior é a queda, diz o ditado. É algo idealizado e elevado por valores abstratos que se desmonta frente aos nossos olhos em função de sua própria fisicalidade, por estar subordinado como todos às leis naturais tantas vezes sublimadas. No teatro, não só rimos desse fenômeno físico imediato como admiramos o ator por saber reproduzi-lo, dominando seu corpo para a execução do resultado pretendido. Há que se dosar a exposição dessa técnica em relação ao efeito. Assim, embora aproveitado circunstancialmente como um esquete, O infortúnio de Ferdinando configura-se como um exercício cênico bem adequado à pesquisa desenvolvida por Luciana Carnout, através do qual o público presente à primeira noite do 4º Festival Niterói de Esquetes pôde se divertir e apreciar a habilidade técnica do expressivo ator Orlando Caldeira.

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