segunda-feira, 6 de setembro de 2010

SEGREDOS DO CAMPO DE GIRASSÓIS - crítica de Lúcia Serrone

O Segredo do Campo de Girassóis, foi uma aparição no palco do Festival Niterói Esquetes 2010. Uma daquelas certezas da vida , que raramente acontece, de se estar no lugar certo na hora exata.
O texto de Rodrigo Sena, marcado milimetricamente em seu estado original, chega ao palco pela direção do próprio autor, com novos contornos, certamente dado pela performance das atrizes.
A história, aparentemente simples, pouco próximo da realidade da platéia, narra a vida de três meninas/mulheres no seu dia a dia no campo dos girassóis. O que poderia ser mais uma mais uma fábula rural, subverte o modelo e fala diretamente ao público contemporâneo nos seus problemas mais concretos. A tal da “dor da gente que não sai no jornal”.
Contado a partir das lembranças de Antonia, numa linguagem coloquial, quase poética, as cenas se multiplicam em ações dentro e fora do campo. O pai violento, o sexo consentido sem amor e o medo da separação, são vividos pelas atrizes que se revezam em papeis masculinos e femininos sem nenhuma caricatura.
Se o texto de Rodrigo Sena, dentro da sua poética, propõe mudanças tão espetaculares, o desempenho das atrizes Anna Fernanda, Jessica Giran e Rafaela Solano é um presente para qualquer diretor.
Com idade que varia dos 18 aos 22 anos, essas mocinhas tão bem informadas sobre o teatro e suas novas linguagens, se despem de qualquer pudor ou vaidade para se entregarem a personagens de difícil composição, ora por sua simplicidade, ora por sua complexidade. O resultado é belíssimo!
O Segredo do Campo dos Girassóis é um desses espetáculos para se guardar na lembrança. A síntese da sua genialidade está nas palavras finas do autor: “E juntas descobrimos o amor e a paixão. Descobrimos o sexo e o prazer. E esse foi nosso mais importante segredo, que mantivemos limitado ao campo de girassóis”
Como dizia o poeta Galizia: a precisão de qualquer intelecto se desfaz plenamente se dele se aproximar a simplicidade. E há os que se apaixonam pela simplicidade.

domingo, 5 de setembro de 2010

JUSTO - crítica: Leonardo Simões

a) Relação entre a proposta apresentada na ficha de inscrição e o que foi percebido em cena:
Na ficha de inscrição deste esquete a proposta se resume a uma descrição quase telegráfica: “Um ator em uma cadeira de rodas, seu assistente em pé. Não há cenário.”. De fato, isso foi o que se viu, apontando uma concentração do foco desta cena nos aspectos do texto e da interpretação, que serão comentados nos respectivos itens. Apesar dessa concisão (ou talvez graças a ela) o esquete funcionou plenamente utilizando de modo eficaz os poucos recursos que propôs. Já desde o início, houve a opção de abrir a cortina e mostrar o palco vazio, criando-se uma expectativa para a entrada de um ator, no melhor estilo MIB (homens de preto), conduzindo numa cadeira de rodas um outro ator caracterizado como um velho, com direito a boina e cachecol. A cadeira de rodas é colocada no centro do proscênio, e o seu condutor fica em pé logo atrás, imóvel durante toda a cena, numa função mista de enfermeiro e segurança, com seus indefectíveis óculos escuros. A partir disso, a cena se desenrola quase sem qualquer ação física, com o velho se apresentando como um contador de histórias que narra, de modo muito próprio e numa perspectiva pessimista e crítica, a conhecida história infantil da Chapeuzinho Vermelho.

b) Questões acerca da dramaturgia:
O texto é o principal suporte deste esquete, embora profundamente associado à eficiência do intérprete, que será comentada em outro item. Absolutamente fiel à proposta da contenção apresentada pelas condições pouco expressivas do personagem-narrador preso à cadeira de rodas, a cena explora essas limitações como um elemento de riqueza e de grande comicidade. A estrutura é assumida como contação de história, mas recheada de comentários sobre o conteúdo da fábula e seus personagens, com as habituais contextualizações das releituras, mas também brincando teatralmente com a própria questão da expressividade e da interpretação. Demonstrando habilidade e bom fluxo criativo na construção do texto, os autores Afra Gomes e Leandro Goulart (presentes à apresentação também como diretores do esquete), extraem humor dos nomes das personagens (chapeuzinho vermelho, mãe e avó) e partem dessa história para caracterizar o velho, com seus esquecimentos, cochilos e desvios de assunto típicos da senilidade. Com isso, utilizam-se dessas características para brincar de modo mais livre com as palavras em sua sonoridade, esvaziando-as propositalmente, muitas vezes pelo excesso de sinônimos sempre pontuados pelo bordão “e por que não dizer”, num eficiente recurso cômico.

c) Sobre a linguagem cênica e as referências utilizadas:
Como um monólogo marcadamente cômico e dito diretamente à platéia, a cena lembra a linhagem de esquetes do espetáculo Terça Insana, com seus inusitados personagens que alcançaram enorme sucesso junto ao público, tanto no teatro quanto no site You Tube. Guardadas as devidas diferenças, a construção do texto lembra também, en passant, os números de stand-up comedy, tão em moda em nossos teatros. Ainda que nesses espetáculos, os humoristas se apresentem “de cara limpa”, isto é, como eles mesmos, sem a interposição aparente de um personagem, há no “DNA” do esquete Justo algo do stand up, sem qualquer demérito; e a própria condição de paraplégico imposta pelo personagem ao ator (que, portanto, não pode ficar “em pé”), sugere uma leve sátira ao gênero, mesmo que seja inconsciente ou casual. É claro que a intenção desse recurso é a de acentuar a comicidade do personagem, o que é alcançado também pelo contraponto representado pelo enfermeiro-segurança, que não reage e nem participa de nada, impermeável a tudo.

d) Quanto à interpretação:
A qualidade do texto já garante boa parte do sucesso da cena em sua intenção de divertir, mas certamente ficaria prejudicada sem uma interpretação adequada. Talvez por isso os próprios autores sejam os diretores do esquete Justo, como forma de garantir essa eficácia textual, conduzindo de maneira precisa os tempos, pausas e intenções do surpreendente Rafael Brits (que é um ator bem jovem), num excelente trabalho de humor pela contenção, ao contrário da habitual comicidade obtida através do exagero. Não fossem a qualidade e a disciplina dele como ator, poderia distorcer o tom correto e a coerência do tipo construído em função dos aplausos e do riso fácil. O ponto alto de sua atuação ocorre quando ele começa a contar outra história (a anedota da formiguinha e do elefantinho) e após preparar a interpretação das personagens em discurso direto, acaba representando ambas de modo absolutamente igual. Também são dignas de elogio a disciplina e a concentração do ator Júlio Ferraz, que faz o enfermeiro-segurança imóvel e mudo em toda a cena. A tendência histriônica que aparece negativamente em grande parte dos atores de comédia, poderia desmontar toda a estrutura do esquete, caso a eficiência do texto não fosse bem compreendida. Hoje em dia, em meio ao brilho das celebridades, saber atuar sem querer “aparecer” além dos limites de seu personagem é uma qualidade que deve ser ressaltada nos atores.

e) Sobre outros recursos expressivos utilizados:
Apesar da simplicidade da proposta da cena, os figurinos são bem pensados e funcionam no tom certo, mesmo com o relativo exagero na caracterização do velho. A iluminação também foi eficiente, marcando bem a entrada da cadeira de rodas e neutralizando o palco ao longo da cena, que ocorre toda no proscênio. O uso desse espaço limitado do palco enquadra o esquete na categoria de um excelente número de “cortina”, que faz referência à origem dessa modalidade teatral. Os esquetes, além de funcionarem como quadros cômicos nos espetáculos de variedades e no teatro de revista, eram também aproveitados para preencher o tempo durante a troca de cenários, quando um número cômico de pequenas dimensões era realizado à frente da cortina fechada, como forma de entreter o público.

f) Comunicação cênica:
Não só por ser uma cena cômica, mas pelas qualidades acima comentadas, esse esquete obteve grande comunicação junto ao público, proporcionando muitas gargalhadas e sendo muito aplaudido.

g) Comentários gerais:
Todos os aspectos observados foram comentados nos itens anteriores.

Título: O DOUTOR LOUCO crítica: Leonardo Simões

a) Relação entre a proposta apresentada na ficha de inscrição e o que foi percebido em cena:
A proposta incluída na ficha de inscrição desse esquete cita uma série de intenções que não se realizaram na cena, num misto de pretensão e desconhecimento que explicam bem o equívoco visto no palco. Em síntese, o grupo se propõe a explorar comicamente “o ridículo da condição da loucura do homem contemporâneo”, através da comicidade de movimentos corporais e uso de certos objetos, além da alternância de tempos no movimento corporal e do jogo de prolongamentos e rupturas das ações, citando inclusive uma incompreensível referência a Bob Wilson.
O que se viu, entretanto, foi uma cena pretensamente cômica cuja graça se esgotou logo no primeiro terço, com uma inábil repetição de gags e trejeitos do personagem principal, representado pelo autor e também diretor. A impressão que ficou é que esse estereótipo do “médico louco”, materializado pela risada e gestual histriônicos, foi o motor criativo da cena, que não se desenvolveu além dessa caricatura.

b) Questões acerca da dramaturgia:
A falta de dramaturgia foi o principal motivo do esvaziamento da cena. Ainda que partisse de clichês ou caricaturas, a exploração das mesmas através de um bom desenvolvimento da situação e dos diálogos garantiria uma base a partir da qual os atores talvez tivessem melhores condições de desempenho. Nesse esquete, a conciliação das funções de autor, diretor e ator principal numa mesma pessoa resultou na absoluta ausência de autocrítica. O teatro impõe a superposição e a interação de leituras, o que é um exercício difícil se for realizado sob o ponto de vista de uma única pessoa, sobretudo quando esta ainda não possui a necessária experiência para tal.
A cena começa com um clima de suspense, referindo-se aos filmes de terror em que figuram os cientistas loucos e também aos desenhos animados que satirizam esses clichês. A situação proposta inicialmente é a da mocinha amarrada que servirá de cobaia aos experimentos do louco. Em lugar do desenvolvimento dessa situação, que poderia resultar num bom pastiche, o que segue é uma série de gags mais focadas no histrionismo do ator, culminando numa abordagem psicanalítica em que a mocinha passa de vítima a repressora, como se o médico delirasse vendo nela a sua mãe. Tudo isso em sugestões bastante confusas que se perdem tanto em proposta quanto em realização.

c) Sobre a linguagem cênica e as referências utilizadas:
O início da cena sugere as referências citadas acima (os clichês de filmes de terror e histórias em quadrinhos) que estranhamente não são sequer citadas na proposta entregue pelo grupo no ato da inscrição. Não foi possível detectar o estabelecimento de nenhuma linguagem cênica compreensível, restando apenas intenções pouco exploradas com esse clima inicial e a ênfase na caracterização histriônica do ator no papel-título.

d) Quanto à interpretação:
Aparentemente, os atores têm pouca ou nenhuma experiência teatral. A caricatura do Doutor Louco, realizada de modo histriônico pelo “ator-diretor-autor” Leandro Fernandes, acaba perdendo a graça, quando se percebe que o personagem e seu intérprete não têm nada mais a acrescentar. A repetição excessiva trai a eficácia da gag, quando esta passa a ser uma espécie de tábua de salvação para tentar renovar em vão o interesse do público com o mesmo recurso que causou risos no início da cena. Embora a repetição seja um dos mecanismos da comicidade, bem aproveitado pelos palhaços e cômicos em geral, seu uso precisa ser bem dosado e não pode ser o único elemento de sustentação de uma cena.

e) Sobre outros recursos expressivos utilizados:
Assim como tudo foi confuso neste esquete, a utilização da pintura branca no rosto do ator é absolutamente incompreensível e injustificável. Talvez seja uma vez mais o velho clichê amador que vê nisso uma referência à teatralidade, independentemente de qualquer linguagem ou de contexto. Aliás, vale comentar que esse tipo de pintura facial foi recorrente neste Festival; algumas vezes com uso mais apropriado e noutras não, como no esquete em questão. Os figurinos, que poderiam contribuir com a valorização dos clichês utilizados, são absolutamente ineficazes e só aumentaram a impressão geral de descuido.

f) Comunicação cênica:
Apesar do já citado riso inicial provocado pela caricatura gestual nas risadas do personagem título, ao longo da cena a resposta dos espectadores foi diminuindo e resultaram num aplauso educado e até complacente com o esforço (ou uma estranha espécie de coragem) dos participantes do esquete.

g) Comentários gerais:
Sem comentários.

ESPERANDO... Crítica de Leonardo Simões

Autor: Samuel Beckett
Responsável ou Grupo: Cia. Dupla de Três
Interpretação: Rachel Palmeirim e Ricardo Lyra Jr.
Direção: Reynaldo Dutra


a) Relação entre a proposta apresentada na ficha de inscrição e o que foi percebido em cena:
A proposta apresentada na ficha de inscrição já evidencia o que foi experimentado na realização da cena: o sentido de uma busca estética e filosófica, abordando os temas da utopia e da promoção humana, através de uma aplicação própria dos trechos retirados da obra de Beckett.
Nessa proposta já está plenamente fundamentado o uso do principal elemento da cena: uma corda que estabelece o jogo cênico entre os dois atores, que representam a “dualidade indivisível” do ser humano, com seus opostos complementares. Esse uso da corda de fato possibilitou uma fusão entre os diversos níveis da cena, desde o significado atribuído aos trechos da peça e seus personagens até a supressão de elementos realistas, jogando o esquete num plano duplamente simbólico e intensificando, também, de modo concreto, o ato de contracenar.
Estranha, entretanto, que um outro elemento muito marcante presente na cena não tivesse sido citado na referida proposta escrita: a maquiagem dos dois atores, que tinham seus rostos cobertos de argila, num interessante efeito plástico que colaborou muito para o impacto causado pelo esquete e que será comentado mais à frente. Assim, a curiosidade sobre o porquê e o como se chegou ao uso desse recurso expressivo ficou em aberto. Essa lacuna na descrição dos recursos a serem utilizados pelo esquete aponta a pertinência da discussão levantada no próximo item, quanto aos aspectos mais vinculados à dramaturgia específica de Beckett.

b) Questões acerca da dramaturgia:
O texto do esquete Esperando... é assumidamente uma costura de trechos retirados da peça Esperando Godot, escrita por Samuel Beckett e que representou um divisor de águas quando foi encenada em meados do século passado. A peça traz dois personagens principais, Wladimir e Estragon, colocados num espaço quase vazio e abstrato, numa trajetória de busca marcada pela espera de algo ou alguém que não se sabe bem quem é: Godot.
A ensaísta Célia Berretini, em sua interessante análise desse texto (ver A linguagem de Beckett, nº 23 da coleção Elos, pela Editora Perspectiva), aponta a brincadeira proposta pelo provocante autor já a partir do título: irlandês de nascimento, Beckett, que escrevia em inglês e em francês, dá ao termo britânico para deus (God) uma finalização com tom afrancesado (“ot”). Assim como no título, todo o diálogo é permeado de brincadeiras sonoras com as palavras, que são trabalhadas muito mais como significantes do que por seus significados. Essa foi uma das características que fez com que seu autor fosse englobado no conceito mais ou menos generalizante do Teatro do Absurdo, cunhado por Martin Esslin, já no início dos anos 60, na tentativa de classificar as variadas experiências dramatúrgicas daquele período, que fugiam a qualquer gênero estabelecido até então e que abriam mão da coerência da fábula para elaborar mais os elementos estruturais da narrativa cênica, seja através dos diálogos, das ações e situações propostas ou do uso inusitado de objetos e caracterizações. Era um pós-guerra que acabara de ver num só gesto a salvação e a possibilidade da total autodestruição pelo poder atômico; era um mundo polarizado pela ameaça e pelo medo, e o teatro refletiu de forma intensa a inquietude provocada por essa situação limite em dimensão global. Diante daquela perspectiva a ação era questionada, tanto como unidade dramática proposta por Aristóteles, como por ação concreta no sentido de atitude; Esperando Godot começa e termina com a mesma frase: “Nada a fazer.”.
Vários dramaturgos incluídos nessa classificação de Teatro do Absurdo trabalham com o non sense, em geral como um efeito patético que às vezes inclui o cômico (mais perceptível talvez em Ionesco e Tardieu), mas que traduz também o clima dramático de perplexidade, de expectativa, de um inacreditável sentido de esperança que flerta com uma constante frustração pelos obstáculos nunca superados (notadamente em Beckett e Arrabal), sendo a principal delas a percepção da impossibilidade de uma verdadeira comunicação humana. A divisão em gêneros já não cabia diante da brutal dissolução de limites da própria existência.
Em meio a esse complexo universo contido na obra escolhida, o esquete Esperando conseguiu selecionar alguns dos trechos mais interessantes da peça para construir um todo bem integrado que serve bem às intenções do grupo. Na proposta escrita, fica clara a opção de utilizar a metáfora aberta de Beckett em seu estrato mais sóciopolítico: “(...) o desejo de falarmos sobre o problema da utopia, ou seja, da renovação revolucionária de ideários e práticas, que teria como principal conseqüência esperada a revisão das relações humanas, calcadas quase sempre no poder do capital”.
Entende-se que a representatividade de uma obra como a de Shakespeare, por exemplo, ao longo dos séculos, baseia-se exatamente na capacidade de conter em si as muitas possibilidades do questionamento humano, sem se fechar numa só. A obra de Beckett, embora utilize outros recursos estilísticos e seja inserida em outro contexto, também têm essa qualidade genial. Perceber isso é o primeiro passo de qualquer concepção que parta de seu texto. O ato de “representar” parece impor aos encenadores ou aos atores a opção por uma ou alguma intencionalidade, mas vale lembrar que isso não é necessariamente obrigatório e que, mesmo se fosse exigido, tal intento seria superado pela própria natureza “aberta” do verdadeiro fenômeno teatral. Certamente quem assistiu ao esquete (principalmente quem não conhecia a obra original) fez as suas associações específicas, apropriando-se de modo próprio das metáforas apresentadas; mas fruiu, sobretudo, aquelas imagens (verbais e cênicas) absorvendo delas um sentido, ainda que não necessariamente uma lógica ou um significado. Aí reside a principal qualidade da dramaturgia utilizada, que reforça a amplitude do teatro como arte.
Para tanto, a tentativa de enquadrar aqueles personagens e aquela situação numa perspectiva única é embaralhada propositalmente pelo autor, com diversas referências. Do teatro oriental (o Nô japonês), Beckett traz o pinheiro, tornado perene no fundo da cena e demonstrando a passagem do tempo pela variação de suas poucas folhas (esse elemento não estava fisicamente presente no esquete apresentado, mais foi localizado como uma árvore qualquer, imaginada no canto do proscênio, no momento em que a dupla pretende se enforcar); essa citação confere à obra uma ambientação não-realista e uma relação com o objetivo principal dos personagens: no teatro Nô, o herói está sempre a caminho, numa incessante busca; a peça não descreve a chegada, mas uma eterna trajetória. Inspirado no music-hall, o autor traz a caracterização típica dos dois “vagabundos” (na peça, o autor apresenta-os vestidos de fraques ou paletós pretos e chapéus cocos), numa imagem que nos foi eternizada pelos filmes mudos de Charles Chaplin e Buster Keaton. Essa referência carrega algo do mundo circense, pela linguagem oposta e complementar da dupla de clowns.
A preocupação de Beckett com a utilização dessas referências e símbolos na encenação de sua obra chega a tal ponto que, para a liberação do uso do texto, havia (ou talvez ainda haja) uma obrigatoriedade contratual de fidelidade às extensas rubricas escritas pelo dramaturgo. Consciente da dificuldade de compreensão de sua dramaturgia, tal exigência talvez fosse uma necessidade para a afirmação de sua linguagem, que abrange muito mais do que o texto escrito, entendido convencionalmente como o diálogo, e envolve o domínio poético da teatralidade num sentido mais amplo. Era o fazer do dramaturgo se libertando da prisão da palavra falada. Tanto é que, em obras posteriores (como em Ato sem palavras I e II), o autor exercitou a construção de cenas inteiras sem qualquer fala, mas com minuciosa descrição, detalhando as ações físicas e gestos a serem realizados pelo ator. A chamada pantomima, antes considerada como território específico do ator, passa a ser tratada como elemento principal pelo autor, apontando não uma invasão, mas uma integração desses segmentos. Nenhum músico reclama que uma obra tenha todas as suas notas e tempos previamente determinados pelo compositor numa partitura. Essa elaboração não exclui a criação própria do intérprete. Também o exercício da sonoridade não verbal como elemento textual foi experimentado por Beckett, nas diversas peças radiofônicas que escreveu.
O esquete Esperando... abriu mão das referências textuais na caracterização dos personagens, pasteurizando ambos com uma maquiagem de argila, tal como foi descrito no item anterior. Não negando aqui a eficácia cênica desse recurso (que será analisada no item específico), cabe registrar que esse gesto é a materialização de uma opção própria da encenação, particularizando aquelas figuras conforme a sua concepção, e tornando-as, talvez, ainda mais abstratas do que no texto original. Questões beckettianas à parte, ainda que se possa indagar sobre a intenção de tal recurso para além da mera plasticidade, essa possibilidade de apropriação e de transformação da fonte dramatúrgica é uma prerrogativa do teatro contemporâneo e como tal deve ser assimilada.

c) Sobre a linguagem cênica e as referências utilizadas:
O diretor Reynaldo Dutra construiu com seus atores uma cena intensa de teatralidade, no melhor sentido do termo. Percebe-se no esquete a inspiração na linguagem dos clowns, num ponto de contato com o universo proposto por Beckett. Mas houve a intensificação desse jogo cênico a partir de um elemento concreto que foi explorado todo o tempo: uma corda. Toda a movimentação e atitudes surgiram naturais a partir do jogo físico proposto por esse recurso, que também era carregado de sentido dentro da situação em que se encontram Vladimir e Estragon, presos entre si e presos, também, a uma expectativa pela sempre adiada chegada de Godot.
O sentido de jogo é essencial nessa cena em que os personagens simplesmente tentam passar o tempo com ações cotidianas de continuidade, sendo desviados das possíveis ações de ruptura, como o suicídio, a separação e a desistência de seu objetivo único. O jogo é o que melhor integra as dimensões textuais (a situação proposta pela cena), existenciais (a metáfora da própria vida) e interpretativas (a contracenação) do esquete. A corda traduz tudo isso de modo objetivo e envolve os atores e os espectadores num desfiar de intenções sem o desenrolar de uma história.
Assim, fica clara a opção pela fisicalidade na interpretação e na expressividade verbal proposta aos atores como linguagem. Ainda que tenha havido alguma concessão no que se refere à unidade de tom entre os dois atores, a ser comentada no próximo item, tal proposta ficou evidenciada na cena apresentada. E o mais importante é que a linguagem cênica foi geradora de todo o resto, mais até do que as intenções contidas no próprio diálogo, que foi valorizado em sua essência e não apenas ilustrado por ações. No âmbito do teatro contemporâneo, esse caso é exemplar para entendermos bem a distinção entre uma atuação física abstrata derivada do jogo cênico e as costumeiras pirotecnias corporais que carecem de sentido teatral.

d) Quanto à interpretação:
A atriz Rachel Palmeirim e o ator Ricardo Lyra Jr. evidenciaram intensa dedicação à proposta do esquete. Isso amplificou os seus recursos expressivos que ambos trazem em sua bagagem teatral. O uso da já citada maquiagem à base de argila, contribuiu muito para a unidade interpretativa construída pela boa exploração da corda como único objeto real. A qualidade desse jogo entre os atores é acentuada pela visível relação existente entre ambos, que resulta em intensa comunicação não-verbal e numa confiança mútua que são muito produtivas em cena.
A destacar, quanto às atuações individuais, a forte presença física da atriz Rachel Palmeirim, acompanhada de uma voz bastante expressiva. No caso do ator Ricardo Lyra Jr., que também possui bons recursos na emissão do texto, chama à atenção a intensidade com que se joga ao ato de contracenar, numa comunicabilidade emocionada tanto com a parceira quanto com a platéia. As individualidades somente aparecem de modo destoante em alguns momentos, no que se refere ao subtexto e ao tom de algumas falas. Enquanto o ator trabalha todo o diálogo numa linguagem mais exteriorizada, em consonância com a proposta da cena, há momentos mais exclusivos da palavra em que a atriz cai em certa interiorização, ou num excesso de subtexto, que sugere um tom psicológico contraditório com toda a estrutura do esquete. Essa ligeira oscilação, entretanto, é plenamente superada, tanto pela já comentada integração da dupla, quanto pelo efeito plástico da maquiagem de argila, que enrijece e neutraliza os detalhes expressivos individuais.

e) Sobre outros recursos expressivos utilizados:
Houve uma excelente unidade geral, em termos de tom e de materialidade, nos recursos expressivos utilizados. Os figurinos se entrosam bem com a maquiagem e esta com a sensorialidade representada pela corda. A argila no rosto dos atores, além de unificar a expressão, resulta numa espécie de poeira que vai preenchendo o palco gradativamente com grande efeito para a iluminação. A cena ganha densidade acompanhando o bom uso do espaço. O recurso sonoro do assobio, feito pelo ator no início e no fim da cena, é um interessante achado que sugere o percurso contínuo da caminhada da dupla, e já nos conduz a um território longínquo, abstrato, ligado à memória ou à imaginação.

f) Comunicação cênica:
Esperando... foi intensamente aplaudido e é interessante a boa assimilação do público. Por sua complexidade e estranhamento, esse esquete poderia ter sido depreciado em relação à habitual comunicabilidade das cenas cômicas ou do previsível envolvimento emocional das cenas mais dramáticas. Portanto, pode-se considerar que a desconstrução desses limites de gênero, presente no texto de Beckett, foi bem assimilada pelos espectadores, num crédito devido à boa realização por parte do diretor e do casal de atores.

g) Comentários gerais:
Apesar das características que delimitam a estrutura de um esquete, que geralmente garantem maior eficácia aos textos criados para essa modalidade, Esperando... conseguiu trazer a essência da obra original sem prejuízo de sua integridade como cena curta. Evidenciou, também, um excelente exercício de integração entre direção e atores.